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Todos nós morreremos na semana que vem. Parte 1
O idiota incurável
Antes de prosseguir, quero deixar claro: a vida e a morte são o que mais me preocupa.Por quê? Ora, pois são apenas tudo.
Sou o que chamam uma mente atormentada. Não que procure ser assim ou chamar atenção para isso. Ocorre que, após algum tempo de muitos dias lúcidos e situações absolutamente normais, torno a despertar no meio da noite, entre pesadelos que me cobrem de terror. Sim, pesadelos. Sim, terror.
Sonho que minha vida se acelerou e passou toda, da infância a uma velhice mal pressentida, esvaindo-se muito levemente, sem o menor sentimento de culpa ou remorso. Sonho também que morri, e de nada serviu ter vivido, pois morri. Participo de uma festa em um lugar onde todos são felizes, então começam a cair mortos, à minha frente, os convidados, até chegar também a minha vez, vertiginosamente. Sonho ainda que não morro nunca: acordo pela manhã, vivo o dia todo, deito-me à noite para escalar o dia seguinte, e assim para sempre. Todos sabem que viver é desagradável. Mas sonhar assim, convenhamos, é um tanto mais incômodo.
Antes de prosseguir, quero deixar claro: a vida e a morte são o que mais me preocupa. Por quê? Ora, pois são apenas tudo. Como esse tudo me incomoda por sua pungente e despropositada insensatez, não encontro soluções possíveis nem em viver nem em morrer, convencendo-me finalmente de que não passo de um idiota incurável – ou, em termos mais românticos, uma mente atormentada.
Claro que não faço nenhum esforço para me curar. A mera alusão à morte basta para dissuadir-me na busca de terapias, ao contrário, lança-me a viver sempre mais intensamente a trama de sensações interiores que me altera, inclusive, os gestos diários, desde os mais básicos. Aliás, poucos simpatizam com minha ideia de que boa parte dos psiquiatras é constituída por loucos apaziguados pela teoria: fazem-se equilibrados por necessidade da profissão, e desde que possam colher elogios a seus conhecimentos, enfim, as vaidades continuam agitando-se no que deveria ser um ego sadio, mas que permanece bem camuflado aos olhos leigos de seus pacientes. Para eles, qualquer um de nós é um caso. Mesmo quando já conhecíamos esses sujeitos antes. E os reencontramos, agora diplomados, e observamos que hoje nos veem com outros olhos, como se possuíssem poderes secretos – e possuem mesmo. Enfim, por minha própria escolha, não me importa ser curado ou não, já que a morte aparece sempre como uma garantia futura. (Veja-se que, com isso, reconheço a precariedade de minha saúde mental.) Seria ingênuo desperdiçar uma oportunidade dessas, a de ser louco, para arriscar-me a uma vida ordinária, tendo de suportar o tédio que une os bípedes mais frequentes, os homens de bem.
No caminho para o trabalho, passo por um bar de esquina onde uns aposentados jogam dominó, ao ar livre. Montam trilhas em silêncio, dobrando um L ou formando um T, como se isso fosse um caminho acertado e nítido, unindo cada trecho pela identificação numérica de cada grupo de pontos, e assim gastam o que sobrou de suas vidas. Para mim, que não sou normal, a trilha de dominó assemelha-se a um caminho sem fim, números eternamente repetidos ao acaso, cuja tendência, desde o início, é desdobrar-se num interminável labirinto. Assim, desde a primeira pedra lançada no vazio, abre-se o leque de possibilidades, mostrando, aos jogadores, sintomas do labirinto iminente. De resto, não compreendo que fiquem jogando todos os dias, durante horas, em vez de escolherem a morte, o que seria mais sensato. Não compreendo isso. Como sou doente, não me forço a compreender nem procuro justificativas para suas vidas, pois nenhuma delas seria satisfatória, e disso todos sabem. As justificativas, digo.
A conspiração dos felizes
Qualquer homem se apaixonaria por ela – anterior
Pesadelos recorrentes – sequência
Guia de leitura
Imagem: Sheila Vaughan. Conversa.
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