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Sonho 3428. Viagem com Cris
Depois, revendo seu sorriso de lábios presos, tenho outra certeza, a de que ela foi absolvida.
Cris vai ser julgada. Eu a acompanho até o tribunal. Estamos em viagem num trem silencioso, com mínimas vibrações, mostrando que o comboio está em pleno trajeto, talvez em altíssima velocidade, e eu sinto um pouco de medo por isso. Não podemos ver nada lá fora. O vagão em que viajamos não é bem um vagão, mas um quarto de dormir. Cris está deitada de lado sobre uma cômoda com gavetas, à minha frente. Usa uma camisola curta, mais ou menos dourada, e está descalça. Ela me olha com sono, abre e fecha os olhos com algo de carinhoso, mantendo um sorriso de boca fechada, apenas dilatando um pouco os lábios. Um sono de quem se entorpece suavemente com a viagem. Seu corpo se agita quase imperceptivelmente sobre a cômoda, conforme a velocidade estável do trem. Não sei por que ela fica assim, num lugar tão desconfortável, como se estivesse posando para uma foto de algum outdoor. Enquanto eu a considero, ela adormece.
Agora não sei mais se estamos num trem. Pode ser mesmo um quarto, apenas. Mas como estamos em viagem rumo ao tribunal, há ainda uma vibração muito suave por toda parte. Fico em dúvida sobre isso. Tudo indica que seja um trem em movimento, e a viagem segue sem problemas. Mesmo assim, estamos num quarto de dormir, meio desarrumado, com o cheiro característico de lençóis amanhecidos – uma espécie de casa que viaja.
Cris fecha os olhos. Faço-lhe um carinho para que adormeça tranquila. Tenho pena dela e me preocupo – ela pode ser mesmo condenada.
Abro uma gaveta grande da cômoda. Não sei o que procuro, e também não vejo nada que me chame a atenção ali.
Cris acorda porque abri a gaveta, e isso a fez tremer um pouco, assustada.
“Não é nada”, eu lhe digo. “Só esta gaveta.”
“Você acha que eu vou ser salva?”, ela pergunta sem nenhuma ênfase especial.
Não sei, penso. Mas não respondo.
Então me ocorre, subitamente, que preciso dar um nome, etiquetar, rotular uma antiga fita cassete com músicas que nós dois gostávamos de ouvir. Abro todas as gavetas, uma a uma, fechando-as em seguida. Talvez essa fita estivesse ali, em uma delas. Não, não há nada ali. Preciso muito escrever os nomes dessas canções na fita que não encontro. Mas não consigo, e desisto. Cris sorri mansamente, em silencio. Eu entendo que isso não tem importância, nem para mim nem para ela. É só uma antiga mania minha de rotular as coisas.
Amanhece: um sol fraco mas brilhante. Estamos de pé, lado a lado, em frente a um espaço aberto entre a confluência de umas ruas, em uma cidade desconhecida. O caminho largo entre as construções é como um grande pátio pavimentado com pedras, como era usado nas ruas mais antigas.
Um vento muito leve passa. Estamos agora em uma das margens desse pátio aberto, olhando uma rua muito larga, uma rua imensa, que entra em declive após uns degraus: já não são mais pedras, e não sei do que é feito esse pavimento que desce à nossa frente, nessa rua cujo destino perde-se de vista. Sabemos que o tribunal fica aqui perto, estamos bem próximos, seja onde for. Estamos agora dentro dele, um lugar silencioso, de móveis pesados. Não sabemos para onde foram os jurados, o juiz, os funcionários – ou por que não vieram. Cris não está mais comigo. Sei que ela foi julgada em algum outro lugar. Eu não vi o final do julgamento e não pude ajudá-la. Ela não está aqui. O vento sopra muito leve. Penso, com uma tranquila certeza, que ela foi condenada. Depois, revendo seu sorriso de lábios presos, de boca fechada, tenho outra certeza, a de que ela foi absolvida.
Há uma cama com três crianças entre os lençóis. É manhã, e elas acabaram de acordar. Sentado de um lado da cama, um homem que deve ser o pai; do outro lado, a mãe, também sentada. Todos me olham em silêncio, esperando que eu conte o que aconteceu.
“Cris foi condenada”, digo a eles, tristemente emocionado.
Mas não tenho certeza disso, como também não tinha antes. Agora, não sei por qual motivo, não posso voltar atrás no que disse.
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Imagem: Christopher Clark. Itália, a cidade velha II.
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