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Quase uma conclusão
Eu próprio criava as palavras, a entonação afetuosa de quem se preocupava comigo.
Quando me vejo estirado num esquife e pronto a ser sepultado, entendo que não quero lutar por coisa nenhuma. No fundo, é o que sinto. Não quero fazer nada pelo meu país. Nem pela raça humana. Enfim, por ninguém. Nem por mim mesmo, é claro. Se alguma coisa saiu errada, pouco me importa. Cuido apenas de viver freneticamente, momento após outro, sem nenhuma resposta, sem nenhum propósito. Se me consideram um animal por isso, tudo bem, tanto maior se faz minha indiferença. Aliás, gosto muito de animais. Quando certa vez comentei com um colega sobre os macacos serem nossos parentes, ouvi em troca, com toda cautela que sua religião lhe permitia, que eram nossos parentes sim, mas que não eram de nossa família. Não sei bem o que ele quis dizer com aquilo nem que vantagens ele via nessa distinção. “Aposto que nem gostariam de ser”, eu concluí. Ele não gostou de minha resposta. Eu já esperava. Nós nos consideramos muito, muito importantes. De qualquer forma, sinto-me imune a tudo que argumentam, pois sei que minhas descobertas interiores e intuitivas são o que mais se parece com a verdade, infelizmente. Infelizmente por quê? Nenhum remorso caberá nos silêncios imensuráveis de um futuro cósmico, quando nada mais carecer de interpretação e quando as palavras não mais existirem. Ocorreu-me tudo isso enquanto tomava banho.
Quando fui à janela, já anoitecia. Em vez de debruçar-me no parapeito, como tantas vezes fizera e como provavelmente ainda tantas vezes faria, fiquei de pé, encostado à outra parede, como uma sombra furtiva que se recusasse a aparecer. Nem mesmo acendi a luz da saleta. Muitas vezes, a essa mesma janela, distraído, peguei-me a brincar que alguém me chamava da porta – por vezes uma senhora piedosa que habitasse o endereço vizinho, o espectro que representasse uma tia ou avó que me valesse. Eu próprio criava as palavras. Eu próprio criava as frases curtas, a entonação afetuosa de quem se preocupava comigo: “Vem, sai daí. Vai vestir uma camisa, menino, olha esse vento gelado no peito…”. Eu quase respondia em voz alta, esquecendo tratar-se de uma fantasia. Eu quase respondia – sim, em voz alta. Por vezes, um amigo, entre outros, passando para levar-me dali, apenas porque desejassem minha companhia: “Vamos logo, cara! O pessoal está esperando, anda, só falta você!”. Por vezes, aquela que apenas quisesse estar sozinha comigo: “Vem, não me deixa esperando assim…”. Valeria a pena tentar responder-lhe. Quem sabe, com isso, pudesse materializá-la.
Vendo a constelação de pontos luminosos que faiscavam por toda a cidade, perguntei-me em qual deles estariam agora Vanessa e Copérnico. Fiquei preocupado, porque já passava das seis, e ele poderia perder o ônibus.
A conspiração dos felizes
51. Foi só um sonho ruim – sequência
49. Praguejando em silêncio – anterior
Imagem: Natalia Goncharova. Composição (detalhe superior). 1914.
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