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Praguejando em silêncio
Não imaginam o quanto me é difícil viver com o que sou.
Quando cheguei ao bairro, após o salto espetacular que me havia projetado para fora daquela carroça sacolejante, eu já não podia fazer outra coisa senão correr, correr muito. Parecia um possesso. Aos que me olhavam com curiosidade, eu me dirigia em sonhos.
Vocês sabiam que eu sou escritor? Sabiam? Pois é, sou escritor. E ainda não encontrei um final para o que chamo minha novela, aquela tralha toda que ando rascunhando. Pois é…
E mais tarde, conforme a situação intestinal me afligia:
Saibam todos que não vou mais escrever novela nenhuma, conto nenhum, porra nenhuma! Vou é me atirar do décimo andar, antes que entre o terceiro milênio do tédio, e não quero mais saber de ler nem escrever nem… Basta! Deixem-me! Deixem-me viver! Deixem-me morrer! Afinal, o que querem que eu faça? Que eu me entregue? Que eu esqueça a conspiração? Que eu acredite em Deus? E o que isso mudará?
Só mais um quarteirão, e estarei salvo.
Mas eu não acredito em Deus, ouviram? Muito menos nas religiões. Não acredito na humanidade, nem na política, nem nas crianças. Falo sério. Não acredito na arte. Nem no futuro. Não acredito em nada!
Ali estão, no boteco, dois daqueles sujeitos que eu não queria encontrar. Mas eles me viram e acenaram, os malditos, chamando-me pelo nome. Não imaginam o quanto me é difícil viver com o que sou. E se soubessem, talvez me abraçassem com piedade ou carinho, isso se não se ajoelhassem a meus pés, e me rendessem gestos de admiração e apreço só por eu não ter me suicidado.
Canalhas! Imbecis! Odeio vocês, odeio todos os que não se importam com a conspiração dos vampiros! Acham que política não é importante porque não passam, é claro, de um bando de ceguetas capengas e indolentes que não enxergam um centímetro à frente do nariz e da calçada de casa!
Insultava-os e ainda a meus ex-colegas, cravando-lhes outros ácidos predicados. Não que me faltassem coragem e disposição para atirar-lhes tudo à cara, mas somente porque eram tantos e tantos que perderiam o sentido, e seria até possível que uns tipos assim se alegrassem com tais carapuças e não me dessem mais atenção, o que também terá sua hora, felizmente. A porta do prédio. Ah, minha janela.
E eu, que moro nesse apartamento minúsculo, de um cortiço imundo, por onde os ratos passeiam durante a noite e onde a água sai amarela das torneiras por causa da ferrugem nos canos…
Só alguns degraus. As chaves. Depressa! Meus móveis reformados e empoeirados, minha sala malcuidada. Como tudo o que é meu, como tudo em mim, como eu próprio! – pensei em Vanessa e em Copérnico nas salas de suas casas.
Vocês, que moram com suas famílias e… Vocês que moram nessas casas lindas que… Vocês, vocês! Sabem quantas vezes eu estive em dificuldades, sem nenhum dinheiro? Sabem como é não ter ninguém?
A porta encardida do banheiro, como sempre, meio aberta.
Sabem quantas vezes eu fiquei doente, sozinho?
Finalmente via minhas calças velhas arriadas ao chão, os azulejos trincados bem à minha frente, em sua simetria perfeita e por isso inquietante, tão inadequada à natureza humana.
A conspiração dos felizes
50. Quase uma conclusão – sequência
49. Válido apenas para pequenas viagens – anterior
Imagem: Umberto Boccioni. Dinamismo de um ciclista. 1913.
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