Office in a Small City por Edward Hopper

Encantos que se quebram ao meio-dia

Considerava com certa melancolia o sorriso próprio dos otimistas, dos inocentes.
Talvez os maiores culpados.

Piet Mondrian. Árvore cinzenta. 1912.GOVERNO OTIMISTA: NOVO PLANO JÁ TRAZ RESULTADOS

Minha manhã decorreu como um surdo pesadelo de nuvens e ruas molhadas. Apertando campainhas, interfones, porteiros eletrônicos. Encarando pessoas feias, desonestas ou apenas desorganizadas, vidas pelo avesso, mentes pela metade. Mostrando papéis, credenciais, colhendo assinaturas e ofensas. Prendia-me a meus próximos passos: os nomes e os endereços e os valores. Mas sabia, no fundo, que já me demorava demais nesse serviço, que me demorava em qualquer serviço, continuava tentando resistir, convencendo-me a suportar diariamente o que bem ou mal fosse, em troca de minha calculada ração mensal. E eu era o mesmo que simulava coragem, acreditando-me aguerrido e irreverente, o mesmo que criticava, com acidez e pessimismo, a covardia alheia, a ausência de gestos e gritos por parte de outros escravos como eu, à mercê dos morcegos.

Ao meio-dia, assim como os encantamentos se quebram à meia-noite, julguei que estivesse livre mais uma vez, livre do trabalho e das pequenas obrigações, enfim, livre do mundo pobre dos homens. Queria estar na lanchonete Mangueira o mais rápido possível, refugiar-me na sombra e no silêncio. Mas ainda enquanto caminhava, decidindo meu pequeno próximo destino, senti tocarem-me o ombro: uma voz dócil e familiar, ouvida recentemente.

“Pensou que não fosse me encontrar mais?”

Medina reconhecera-me pelas costas, forçava-me a voltar, a voltar sempre.

“Este mundo é pequeno, hein?”, sorriu.

“Pequeno demais”, respondi em voz baixa.

“Então, trabalhando muito?”

Eu o encarava impassível, movido por um silêncio saturado de manhãs urbanas, um silêncio pesado de chuvas. Não sentia pena nem raiva. Não o odiava (sem dúvida, não o amava) nem o estimava. Considerava, com certa melancolia, o sorriso próprio dos otimistas, dos inocentes que circulavam por toda parte: talvez os maiores culpados.

“Não ouviu? Perguntei se tem trabalhado muito”, ainda sorrindo. Sorriso do tipo que chamam contagiante.

“E você?”, disse eu, cinzento.

“Graças a Deus. Enquanto Deus me der saúde…”

Incapaz de perguntar o que há comigo (e não que me interessasse responder-lhe), incapaz de perceber algo diferente ou perguntar por que meu rosto de nuvens, meus olhos vagos, como se todos estivessem bem por toda parte, prodigalizando esperanças. Retraiu o sorriso, outro tom de voz.

“O Delfino, hein? Que coisa…”

Isso não lhe saía da cabeça. Isso, o Delfino.

“O Delfino?”, disse eu, curvando-me ligeiramente em sua direção. “O que tem o Delfino?”

Medina pareceu perder a cor por um momento, presa de meus olhos subitamente incisivos. Cristalizou-se, como o velho cego que me importunara dias atrás.

“O que tem o Delfino?”, repeti, sem desviar os olhos.

“Ora… Eu estava pensando em tamanha desgraça…”

“A morte de um homem não é uma desgraça.”

“Mas eu estou falando do Delfino…”, gaguejou. “O Delfino, ora. Nosso amigo que…”

“O Delfino não é mais nosso amigo.”

“Nosso amigo… O quê? Como? Como, não é nosso amigo?”

“O Delfino não é mais nosso amigo”, eu repeti, com a mesma calma, a mesma carinhosa frieza, compreensivo e sem agressividade. “O Delfino morreu.”

Medina engoliu a saliva, acossado por meus olhos fixos, a um tempo implacáveis e complacentes, atravessando-lhe a alma simples, fazendo-o sentir-se subitamente ameaçado.

“O Delfino morreu, Medina. Lembra?”

Esperei que ele rompesse o silêncio, tentava dirigi-lo para a vida, para o que de fato era a vida.

“Pois é, isso que… Foi isso que…”, fez ele reativando o pseudossorriso, que era o sorriso dele, que era a cara dele.

“O Delfino morreu”, repeti, com a mesma serenidade e equilíbrio. E como pronto a oferecer-lhe algum tipo de sincera solidariedade.

“Que coisa, hein?”, ele insistiu, como num cacoete, querendo crer que eu não o estivesse fixando daquela maneira.

“O Delfino morreu”, afirmei, pausadamente e no mesmo tom.

“…”

“O Delfino… morreu.”

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

23. A tarde (e tudo o mais) pela metade – sequência

21. Vina disparue – anterior

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Imagem: Piet Mondrian. Árvore cinzenta. 1912.

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