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Vina disparue
Que tinha me perdido de Vina. Que não a encontraria mais.
Chuva fina e silenciosa desde o fim da tarde. A noite sobre a cidade, como as manhãs, não revela as consequências das decisões ministeriais, atos e decretos. Não se mostra a ruína como numa panorâmica. É o caso. Os bombardeios, as sutilezas. A paz.
Vina voltou à sala amarrando meu roupão logo abaixo dos seios.
“Alguma coisa interessante pra se ver?”
“Gostaria que houvesse.”
Não ouvi o som de meus chinelos. Ela estava descalça. Aproximou-se, assimilou meu rosto entediado, atravessado de chuvas. Finas e oblíquas.
“Você não me quer aqui, não é?”
“Não é o caso, Vina.”
“Você pensa que eu tenho aids, é isso.”
“Não, claro que não.”
“O caso, não é? Você não me quer aqui.”
“Pode ficar, se quiser.”
Silêncio.
“…”
Silêncio.
“Só quero que você guarde uma coisa”, disse ela às minhas costas. “Não importa o que digam. Não importa nada do que digam. Não importa tudo o que digam. A vida é mais forte.”
Ouvi – antes, senti – que ela voltava ao quarto. Ensaiava dizer-lhe que era sozinho e mal podia sustentar-me. Não que fosse esse o caso. O caso, não é? Não é o caso, Vina. Juro que não. Gostei muito de ter conhecido você. Pode voltar sempre que quiser. Obrigado por tudo e… boa sorte.
Distraído com a chuva, perdi a noção do tempo. Ouvi que a porta do quarto se fechava. Não tinha certeza. Talvez a porta da frente. Fui ao quarto, meu roupão era uma moita cinzenta sobre a cama. Corri os olhos, a mala escura não estava lá. Banheiro. Sala. Cozinha.
“Vina…”, chamei sem alarde. “Vina.”
Ouvi o ruído grave, metálico: o velho elevador cerrava as portas, mergulhava poço abaixo, zunindo e estalando surdamente os cabos.
“Vina?”
A luz do corredor, queimada há anos. Na escuridão, o pequeno painel luminoso repassava um a um os pavimentos percorridos. Alguns números, lampadinhas pifadas há décadas, interrompiam a sequência decrescente. Chamei, movido por um vício, o outro elevador, sabia que ele estava enguiçado há milênios. Esmurrei as portas, supondo que o eco e a vibração das pancadas pudessem alcançar Vina em seu curso, um código telegráfico brutalmente improvisado. Despenquei pelas escadas. Alguns andares, como o meu, às escuras, retardaram-me mais do que minha ansiedade suportava suportar.
“Vina!”
Ouvi as portas do térreo, pact-pam!, faltavam-me ainda três ou quatro andares.
Lá embaixo, o elevador vazio, seu interior mal iluminado. O estreito corredor, o linóleo, o balcão deserto da portaria, a porta: nenhum sinal de que alguém houvesse passado por ali.
“Vina, você não passa de uma maluca, ouviu?”
Saí à rua, olhei ao redor. Ela não podia estar longe, com uma mala daquelas. Corri à esquina, voltei. Outra esquina. Volta ao quarteirão. Tentei identificá-la entre os fregueses de uma padaria ainda movimentada. Percorri as quadras vizinhas, não me aparecia sequer outra pessoa ao relento. Minhas pernas enfraqueceram, eu ofegante, o cansaço impedia-me prosseguir. Detive-me. Podia ver meu hálito iluminado pelo poste, diluindo-se entre os estranhos vapores que sobem com as chuvas. Só então me dei conta de que estava encharcado. Que tinha me perdido de Vina. Que não a encontraria mais. Olhei para cima, os fios de chuva cintilando em estreita perspectiva sob a luz de mercúrio. Depois, olhei para o céu. As nuvens moviam-se muito depressa sobre o fundo da noite, refletindo as luzes da metrópole em sua extensão cinzenta.
Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)
22. Encantos que se quebram ao meio-dia – sequência
20. Prendendo-a pela mão – anterior
Imagem: Kevin Kusiolek. Noite e dia.
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