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Prendendo-a pela mão
Quem me confundiria com um herói?
“Quando doutor que não se ninguém ainda dizendo todo no esgoto que não vocês vocês também eu aqui.”
O estrapilho girava e dançava enquanto rosnava o que tinha a dizer. Simulava, com os braços, asas de aves e de aviões. Entre seus estranhos objetivos, um era voar. Era jovem e robusto.
“Que faz mas não sabe eu eu eu que não que merda eu sei o doutor que me cuspiu mas eu cuspo também eu nele eu eu também…”
“Será que ele está bêbado?”, perguntou Vina, bancando a adulta que não se assustava com uma coisa dessas.
“Quem sabe? Talvez não. Que diferença faz? Foda-se.”
Parei um pouco, a mala dela era mesmo pesada depois de algum tempo. Sentia o suor na testa, começando a escorrer. Só queria tomar fôlego. Vina, pouco mais baixa que eu, ia ao meu lado, andava ao meu lado, parava ao meu lado. Que tipo de casal pareceríamos ser, para os que passavam?
“Que coisa, não é?”, dizia ela sem tirar os olhos do sujeito que resmungava sem parar, quase tropeçando a alguns passos de nós.
“Que me cuspiu mas eu cuspo também eu mato eu mato ah eu mato ele sim mato ele também…”, enunciava enfaticamente o homem mais sem lógica do mundo. O que restara de sua camiseta encardida ostentava, em letras largas e compactas, a palavra WINNER. “Por ele não foi que a caca da vida de tudo sem eu matar mas eu mato deus eu eu se volto que me fodeu não que eu eu sei mas ele da merda e a vida que a vida que a puta da vida que a vida!”, gritou.
Vina assustou-se, mão no peito: “Ai, credo! Que susto! Pensei que fosse comigo.”.
Tomei-a pela mão antes que o homem se aproximasse. Os pobres são felizes, mas pode haver exceções. Ele parecia perigoso.
“Já chega, Vina. Vamos pra casa. Logo vai começar a chover outra vez.”
Puxei-a com força, para que nos distanciássemos da possibilidade de alcance daquele louco. Andamos rápido, mesmo com a mala pesando em minha mão esquerda. Só então me dei conta de que, afinal, eu lhe pegava a mão pela primeira vez nesse dia. Eu lhe dava a mão depois de muito tempo. A mãozinha suada dela também prendia a minha com força. Aceitei isso. Senti algum conforto por um instante. O tempo era sempre pouco para qualquer coisa que me acalentasse. E eu sabia disso desde que minha infância desaparecera entre os dias. Levava Vina comigo, prendendo-a pela mão, com surpreendente energia. Mas mantinha a cara fechada, os olhos estreitos contra o vento, não olhava para ela. Tive vontade de chorar.
A iminência da chuva, alguma brisa extraviada e até a agourenta e quase imperceptível umidade do ar deram-me, num instante, uma memória rápida, a imagem não requisitada, o adolescente em ruas como aquela, o rapazinho com sua capa de chuva, ordinária e não tão impermeável, da qual se orgulhava porque tinha a impressão de que os outros poderiam confundi-lo com um detetive de cinema, também o seu relógio todo negro, da Texas Instruments, telinha retangular, seus dígitos estreitas linhas vermelhas, quando solicitados. E o que poderia proteger-me agora? Quem me confundiria com um herói? – agora que não disponho de outros valores como os que me serviam antes, que eram ilusórios e ainda assim motivadores, como a capa cinza-prateada de investigador europeu, agora que não recordo onde estão minhas figurinhas difíceis nem mais encontro bolinhas de vidro azul-claras no bolso. Quase olhei meu próprio pulso, um ímpeto absurdo: onde estaria meu relógio, tão moderno? O que posso, hoje, esperar do tempo?
“Você está me ouvindo? Hein?”
“Claro que sim… Vina.”
Ela foi repetindo sobre o esquema ser algo gigantesco, monstruoso (palavras minhas), enquanto descíamos ao metrô. Mas acrescentava que a vida era sempre mais forte. Eu bocejava. Só queria estar em casa, tomar um banho, livrar-me das ruas, encerrar meu dia pela metade e não ver mais a cara feia do povo.
Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)
21. Vina disparue – sequência
19. A vida com mil riscos – anterior
Imagem: Michael Alford. Aldwych 5, Bush House.
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