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Somos cópias produzidas pela repetição
Aliás, Vanessa estava tão bonita e agradável que nem de longe parecia uma boneca empolada.
Ao contrário do que eu vinha radicalmente decidindo até há pouco, eu poderia sim, por um instante armado de fera convicção, abrir mão de qualquer ideia de vingança, servindo-me do inesperado pretexto que o destino me apresentava, esse casal já por uma vez esquecido e às portas da primavera que poderia ser minha a qualquer momento, bastando que eu assim o desejasse e o decidisse em mim mesmo. Poderia levantar-me dali, como para o resto de minha vida, alterando por minha conta o decurso das coisas. Despedir-me feito um cavalheiro, dentro do que me restava em discrição e honra. Partir quase em estado de graça por haver-me libertado, como quando ouvia J. S. Bach e pensava que aquele homem acabava de repetir-se em mim através de sua música. Como se o próprio compositor, até ontem mesmo, estivesse vivo, pois, de alguma forma, eu me tornava ele enquanto o compreendia, assim como tantos outros se repetem cada vez que os reencontramos.
Vanessa, Copérnico e eu. Certamente houve outros como nós, em diferentes épocas, vestindo roupas de seu tempo e lugar, trocando frases em outras línguas. Certamente tornaremos a nos repetir com a continuação do tempo, se o tempo continuar, pois toda pessoa é eterna enquanto puder repetir-se em seus semelhantes, daí porque a reencarnação será sempre uma metáfora útil. Assim, eu me apegava à incerta memória de inúmeros homens sensíveis e sábios, que haveriam de inspirar-me esta próxima atitude definitiva e sensata, como também redentora, a meu favor, com a certeza de que nesse dia, sob a chancela de nosso agourento reencontro, esses homens haveriam de repetir-se.
Isso durou brevíssimos segundos, enquanto por pouco eu não realizava minha mais recente ideia, prevendo que eles talvez me perguntassem, com estranhamento: “Aonde você vai?”, para que em seguida eu lhes pudesse, com um largo sorriso, responder: “Vou ao meu dia!”. Mas tudo isso eram criações minhas, frases minhas, eles não me perguntariam o que eu apenas desejasse, nem da maneira como minha imaginação o ditava, talvez mesmo nem perguntassem nada. E minha decisão anterior é que acabava mantida, por falta de algo melhor.
A partir de então, fui aperfeiçoando em silêncio tudo o que pretendia lançar-lhes à cara, e armava as mais fulminantes investidas, ensaiando como se já as pronunciasse em mim mesmo.
Que dizer de vocês? Mal são gente em carne e osso. Não passam de dois bonecos empolados e serão assim a vida toda, o que é pior.
Coisas assim. Naturalmente eu exagerava um pouco, é compreensível. Aliás, Vanessa estava tão bonita e agradável que nem de longe parecia uma boneca empolada. E eu, que sempre tive uma tendência a admirar detalhes que a muitos passavam sem importância, a linha de um maxilar, o desenho dos olhos, a proporção de um tornozelo, as mãos, também acreditava intimamente que o desejo superficial de possuir uma mulher podia ser transformado pouco a pouco em uma maneira mais sutil e carinhosa de se conhecer o erotismo dos encontros e a sensualidade dos corpos. E pensar que ela agora estava ali, à minha frente, dando-se a ser admirada por mim… Ah, Vanessa! Se soubesse com que olhos eu a vejo…
A conspiração dos felizes
45. Foi então que… – sequência
43. Agressividade dos pombos – anterior
Imagem: Charles Demuth. Maçãs e copo de vidro. 1925.
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