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Comer alguma coisa, a vida outra vez
Sem saber, ela me arrastava por caminhos que normalmente eu tentava evitar.
GOVERNO QUER O APOIO DE TODOS NO COMBATE AOS ESPECULADORES
Não fui à livraria, não queria mais a ovelha ruiva. Ela própria rompera seu encanto ao revelar-se uma criatura aprisionada, fraca e dependente. Aliviou-me a decisão de nunca mais voltar lá, nem mais folhear aqueles livros mofados, embora recém-saídos das gráficas, estalando de novos. Fui direto à lanchonete Mangueira. Dei com uma mala preta, bojuda. Vina e uma pilha de livros.
“Aqui não entra ninguém. Você não vai vender nada.”
Ela se levantou sem alterar sua impassibilidade ou seu silêncio. Olhou-me de frente, sem sorrir.
“Estava esperando você.”
Minha camiseta caía até suas coxas, escondia-lhe a cintura. Os ombros não sustentavam as mangas, e Vina não tinha seios que a inflassem. Ela estava engraçada.
“Você já comeu?”, perguntei imprudentemente. Ela não tinha um centavo.
“Estava esperando você.”
Peguei seu braço.
“Então vamos, que eu estou besta de fome. Você também. Parece um cadáver, precisa de vitaminas.”
Ela não saiu do lugar.
“Que foi?”
“Quer que eu vá embora?”
“Que foi agora, Vina?”
“Me acha uma maluca, não é?”
“Não, não acho. Vamos. Vamos comer alguma coisa.”
“Sem um gesto. Um grito. Um beijo.”
Eu me esquecera de beijá-la, que dramalhão.
“Um parafuso, um esquema gigantesco…”
Beijei-a, para que se calasse.
“Deixa disso, vamos sentar ali. Quero conversar, ficar junto de você.”
Fiz o pedido ao dono da lanchonete Mangueira.
“Nada de ventilador”, pisquei. “A chuva já fez esfriar um pouco.”
Voltei-me para Vina.
“A que horas acordou?”
“Antes de você”, disse ela, ainda indócil. “Fingi que dormia para sentir um carinho seu, um afago. Um beijo na testa, quem sabe…”
“Beijei você no rosto, não se lembra?”
Ela não respondeu. Desviou os olhos.
“Não lembra?”
“Lembro!”, disse irritada.
Peguei sua mão, a que parecia mais rosada, uma mancha disfarçada ali.
“Que é isso? Batom?”
“É sangue”, fez ela, bicuda.
Acho que ela costumava morder as costas da mão, algo desse gênero.
“Vina, por que mentir assim? Você estava mesmo dormindo. Eu beijei seu rosto, saí em silêncio para que você não acordasse, fechei a…”
“Será que você não sente nada?!”, cortou-me. Ergueu e desceu as mãos, batendo as palmas nas próprias pernas. Dessa vez, sua fala, a frase e seus olhos nervosos atravessaram-me como uma lâmina.
“Os sanduíches… As vitaminas… Madame…”
Madame. Onde vamos parar?
“Obrigado”, eu disse.
Um vento nada agradável, frio até, considerando-se as últimas previsões, soprava contra nós, sobre as ruas molhadas. Despenteava-me ainda mais os cabelos, escondia o rosto de Vina entre os muito lisos dela. Eu carregava a mala.
“Não quero atrapalhar seu serviço.”
“Faço esses amanhã. Digo que não encontrei. Eles são muito desorganizados, não têm como conferir isso.”
Andamos muito, sem falar. Separados. Sem saber, ela me arrastava por caminhos que normalmente eu tentava evitar. Cada um de nós adivinhando que nosso silêncio encobria a ação contínua de nossos pensamentos paralelos, sabe-se lá em que grau de desencontro e discordância.
Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)
19. A vida com mil riscos – sequência
17. Minha parte entre o sol e as chuvas – anterior
Imagem: Georges Braque. Violão, fruta e jarro. 1927.
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