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Agressividade dos pombos
Achei isso notável e digno de registro.
Copérnico e Vanessa – não é que já ia me esquecendo deles? – lembraram um comercial de TV, desses que ninguém aguentava mais, no qual um sujeito sem camisa tocava saxofone na sacada de um apartamento, ao que Vanessa reagiu com adjetivos apaixonados, como se estivesse diante do que havia de mais original no mundo. Com isso, passei a observá-la com alguma desconfiança. Por que estaria concordando com tudo aquilo? Mas enquanto eu procurava definir-me, eles se puseram a elogiar filmes de aventura ou espionagem ou o que o valha, e isso dissipou minhas dúvidas: eu sabia que Vanessa era uma garota inteligente e não acreditava em uma só palavra do que ela estava dizendo.
Ainda disseram muitas tolices, e nenhuma vez mencionaram o dia ou a primavera. Achei isso notável e digno de registro. Também sempre me pareceu curioso que tantas pessoas ricas não tivessem boa educação, cultura ou mesmo alguma evolução como seres humanos. Algo deve atrofiá-los, eu não saberia dizer o quê, nunca foi essa a minha especialidade. Nem gostaria que fosse.
Chegaram a tocar num assunto dos tempos de colégio, mas mudaram logo, antes que eu me metesse na conversa. Vanessa então disse que sua mãe estava tendo dificuldades em conseguir uma faxineira competente, porque as “de hoje em dia” não mais se empenhavam no serviço e inclusive enceravam o piso de qualquer maneira, sequer se punham de joelhos sobre o soalho – ela queria uma boa empregada, que ficasse de joelhos. Movido por comentários desse tipo, jurei que encontraria um tema para entediá-los também, mas não foi possível. Só o que me ocorreu foi lembrar-lhes aquela anedota evangélica do camelo que se recusava a passar pelo buraco de uma agulha, mas achei que isso seria muito incisivo de minha parte. Além de tudo, ninguém aguentava mais a ideia de acabar num lugar aborrecido como o Reino dos Céus, principalmente pessoas como eles, que já tinham seu reinozinho na Terra.
Copérnico contou que, quando era criança, prendia a respiração diante dos pais, ameaçando-os com seu virtual suicídio, caso não lhe aumentassem a mesada, e que tal estratégia sempre rendia bons resultados. Pensei então em assustá-los, prendendo a respiração ali mesmo, mas logo descartei também essa ideia. Aliás, eu, se fizesse uma coisa dessas quando pequeno, provavelmente cairia roxo aos pés de minha mãe, mesmo porque ela nem tinha como me sustentar direito e não sobreviveria a um filho suicida, exigindo mesadas.
Enquanto os dois não paravam de tagarelar, pus-me a observar uns pombos que ciscavam ali perto. Eram brancos, como se tivessem saído do banho. A docilidade de tais pássaros sempre inspirou, a todos, sentimentos pacíficos, embora eu os considere um tanto apáticos. Mesmo assim, é inevitável que eles nos façam lembrar a impossibilidade de entendimento entre os homens. De certa forma, eu os invejo. Ao menos, são uma esperança surgida da própria natureza, entre suas relações atrozes, e não deixam de ser um exemplo para a humanidade, que nunca… Mas, nisso, dois deles se desentenderam por não aceitarem dividir uma migalha de qualquer coisa e iniciaram uma desajeitada controvérsia, entre bicadas tímidas, próprias dos que não sabem agredir, terminando por debandarem todos, numa dessas curvas cheias de asas que eles parecem combinar previamente. Acho que eu estava errado. Os pombos de hoje já não são os mesmos. Devem ter assimilado alguma influência das civilizações urbanas, recuperando um pouco daquele senso primordial e latente de sobrevivência. Tornaram-se agressivos e fúteis, em breve estarão participando de um desses filmes lindos que Copérnico e Vanessa tanto elogiam. Eu os segui (aos pombos, entenda-se) com os olhos escancarados, entre perplexo e desiludido, enquanto eles todos desapareciam por trás de alguns prédios.
A conspiração dos felizes
44. Somos cópias produzidas pela repetição – sequência
42. Perigosas canções inofensivas – anterior
Imagem: Natalia Goncharova. Gatos (percepção raionista em rosa, preto e amarelo). 1913.
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