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A vida com mil riscos
Só então me dei conta de que não tínhamos para onde ir.
“Será que no mundo todo chove?”, disse ela, como se de fato não houvesse mais que dizer, sendo aquela a última frase possível num dia como aquele, ainda em curso, ainda possível.
“No mundo todo chove.”
“No deserto também chove?”
“No deserto… Às vezes.”
Continuamos. Havia, ali perto, um cartaz sobre uma mostra de arte.
“De quanto em quanto tempo você acha que eles substituem as obras desses museus?”
“O quê? Como assim?”
“Ali diz: museu de arte contemporânea.”
“O que tem?”, eu no limite de meu humor.
“Ora, o tempo passa. Não vai ser mais arte contemporânea. Não é?”
Nem resmunguei. Não era nada engraçado. Eu, com mil coisas para pensar. O mundo com mil desgraças. A vida com mil riscos. E Vina não querendo mesmo ser engraçada, pelo jeito – parecia abatida, triste.
“Vina, olha. Vamos por aqui, certo? Essa rua vai dar no terminal que nós queremos.”
Continuamos. Mais silêncio. Vento e tempo úmido.
“Tive uma colega de quarto que foi bancária…”, disse ela desastradamente.
Passávamos em frente a um banco, dos mais execráveis. Fiquei quieto.
“Foi treinada para vender produtos do banco, mas acabou caixa.”
Produtos do banco, como se produzissem algo. Criam nomes assim sem nenhum escrúpulo e treinam jovens sorridentes. Até gente de classe média cai nessa. Delfino que o diga. Dissesse.
“No caixa, ela tinha que contar diariamente pilhas e mais pilhas de dinheiro, cédulas ensebadas e malcheirosas, que vinham dos grandes depositantes, principalmente das igrejas.”
Fiquei quieto.
“Ela pediu ao chefe dela que a mudasse de seção. Tinha náuseas e estava enojada do dinheiro das igrejas.”
“Muito bem”, disse eu sem ênfase. “Ela conseguiu?”
“Foi demitida.”
Paramos numa esquina. Sem nos olharmos. O vento insistia.
“O dinheiro das igrejas é como o dinheiro dos bancos, não é? Dá nojo, porque a gente sabe de onde ele vem e pra onde ele vai. Fala. Que foi? Você me acha cruel?”
“O mundo não vale nada, Vina. Bancos. Igrejas.”
“Mas nós valemos alguma coisa. Nós.”
Vina procurava meus olhos. Fiz como se não a percebesse e os lancei à distância, ao redor, buscando o horizonte, um horizonte. Onde não havia horizontes. Não era aquela a rua do terminal, eu estava enganado. Só então me dei conta de que não tínhamos para onde ir.
“Ser pobre não é o pior”, disse ela mais desastradamente ainda. “Conheci muita gente pobre. Gente feliz, de bem com o mundo.”
“Esse é o grande erro deles”, disse eu, pactuando com sua gafe.
“De bem com a vida. Ouviu?”
“Ouvi.”
“Todos eles dizem que a vida é assim mesmo, difícil, mas que tudo paga a pena e o prazer de estar vivo. Acha que eu estou mentindo?”
“Não sei. Os pobres mentem muito.”
“Grande consolo, você diz. Você é que precisa se consolar. Não aprende a viver, não se sente bem vivendo, essa é a verdade.”
“A verdade, não é? Guarde isso para os seus poemas, Vina. Todo grande poeta foi um dia um jovem ingênuo, você tem suas chances. Enquanto isso, os bancos guardam o produto do roubo. Aliás, a pobreza sempre casa bem com a poesia.”
“Fácil falar. Se você não é poeta. Nem pobre.”
“Quanta coisa triste neste mundo, Nossa Senhora da Penha…”
“Vai, vai falando. Vai rindo. Mais triste é não querer mudar.”
Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)
20. Prendendo-a pela mão – sequência
18. Comer alguma coisa, a vida outra vez – anterior
Imagem: Antonio Sant’Elia. Edifício industrial com torre angular. 1915.
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