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Excentricidades e harmonias
Não tenho vergonha de confessar nada.
A esta altura de minha vida, a solidão progressiva e pungente afeta-me de maneira a conduzir minhas atitudes alucinadas. Daí porque resolvi ficar.
Para se ter uma ideia, e a propósito de tal solidão, cheguei a escrever uma série de cartas a mim mesmo, enviando-as metodicamente pelo correio. Imitando até caligrafias femininas, eu confessava amores, desejos eróticos inadiáveis, e marcava audaciosos encontros clandestinos, tudo isso, observe-se, só para o caso de alguém um dia vir a vasculhar meus pertences e minha papelada íntima. (Aliás, tenho muitos papéis, é sério.) Mas nunca ninguém vai ao meu quarto, não tenho nada de valor, nem mesmo um larápio teria o que fazer por lá. E assim compreendi que tudo isso não passava de uma possibilidade muito remota, e só a mim é que faltava vislumbrar o óbvio. Pelo menos, tento ser sincero. Não tenho nenhuma vergonha de confessar isso. Não tenho vergonha de confessar nada.
E não sou eu o único caso de excentricidade em minha família. Uns ancestrais italianos, quando se desentendiam, davam tiros nos pés uns dos outros. Um tio-avô, obcecado com a ideia de entrever o dia de sua própria morte, levou uma vida pesquisando ocultismo, contatando videntes, curandeiros, médiuns e outros paranoicos, até falecer num dia qualquer, sem nenhum presságio, nenhum sinal, aos cento e dois anos de idade. Pois é. Um primo converteu-se ao islamismo e, mesmo antes disso, ele afirmava que Jesus era um híbrido, filho de um extraterrestre, cuja missão fracassara – conceito que também me entusiasmou por certo tempo, é preciso que o confesse. Há os que não creem na chegada dos homens à Lua, os que fazem mapas astrais e os que não consideram a aids senão como um fenômeno de publicidade. Tenho inclusive um parente distante que vive enclausurado, à espera do fim do mundo. Pensando bem, de forma íntima ou distante, somos todos parentes, e isso não se restringe aos representantes mais próximos de nosso DNA. Nem somos, os de minha família, os únicos casos de excentricidade que conheço. O alquimista Paracelso garantiu que viveria eternamente, supondo haver encontrado o elixir da vida, até falecer de uma queda acidental, aos quarenta e oito anos. O sueco Olof Rudbeck tentou provar que era a Escandinávia o misterioso continente de Atlântida e, não bastasse o escândalo, afirmava ser o berço da civilização, como era de se esperar, a Suécia. E eram todos homens cultos, exemplares.
“Viu o filme ontem?”
“Que filme?”, adiantei-me, impedindo que Vanessa respondesse. Evidentemente a pergunta de Copérnico era dirigida a ela.
“Não lembro do nome”, disse ele franzindo as sobrancelhas.
Assim é Copérnico. As coisas só passam por sua cabeça. O filme, qual fosse, no dia seguinte estaria metade esquecido. Com cérebros como o dele, a herança cultural humana abriria falência. Felizmente existe a escrita.
Vanessa falou o nome do filme. Era um daqueles que ninguém aguentava mais.
“Ahn…”, murmurei.
Eu quase nunca vejo televisão, menos ainda teria paciência de acompanhar uma fita ordinária como aquela, um abacaxi idílico que até hoje só conheço de nome. (Ironicamente, eu também não me lembro do nome.)
“É muito famosa aquela cena final”, tornou Vanessa.
“Que cena?”
“Aquela em que eles dançam juntos à beira-mar. Aquele pôr do sol… Foi tão bonito…”
“Ahn…”
Alguma coisa soava falso no que ela dizia. Nenhuma pessoa devidamente alfabetizada suporta ver inteiro um dramalhão desse tipo, especialmente se termina com um final feliz. Ninguém aguenta mais. Ela devia estar insinuando alguma coisa, talvez tentando conduzir o rumo da conversa.
“Quem entende os americanos, não é?”, disse eu.
Mas eles não me deram atenção. Queriam falar de cinema, claro. Poderíamos conversar sobre música ou xadrez, mas isso já são coisas muito bonitas e complexas que uns grosseirões ridículos como vocês jamais estarão prontos para assimilar.
Copérnico mencionou a trilha sonora lindíssima, e Vanessa aproveitou para dizer que gostava muito de música orquestrada. Não a erudita, mas aquela do tipo que adormece as pessoas nas salas de espera e que ninguém aguenta mais. Ela não usou essas palavras, claro. Mas sei disso porque citou alguns daqueles maestros sorridentes que vivem transcrevendo canções populares sem nenhum critério, inclusive tornando insuportável a música de última fase dos Beatles. Lembrei que, em nosso tempo de escola, as canções de que Copérnico mais gostava, além das que se faziam obrigatórias a todos nós pela imposição das paradas de sucessos e por necessidade nossa de fingir que pertencíamos todos a uma mesma tribo, eram sempre as mais enfadonhas e repetiam, em nosso ou em outro idioma, que o mundo era um lugar muito bonito para se viver, que era sempre bom, assim como o mundo de todos os que cultivavam aquelas canções insípidas – do contrário, ficariam indignados, talvez horrorizados, com a injustiça reinante. Mas não. Copérnico agia e pensava como se o mundo de fato estivesse sempre em harmonia. Eu tinha de admitir que ele não estava propriamente errado: o seu mundo não era o das outras pessoas, não era as pessoas do mundo. Era o plácido círculo de parentes e amigos que o amavam, a tal ponto de nunca permitirem que fracassasse por sua própria conta. Seu mundo não era o das pessoas humilhadas, esmagadas por condições irremediáveis, condições mantidas por um poder quase invisível e acima de nossas forças. O seu mundo (e como me era difícil aceitar isso!) estava sempre em harmonia.
A conspiração dos felizes
42. Perigosas canções inofensivas – sequência
40. Eu ali, de uma maneira infernal – anterior
Imagem: Georges Braque. Ateliê IX. 1956.
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