Office in a Small City por Edward Hopper

Restos de meu pequeno mundo perdido

Eu juntava restos das revistas em quadrinhos que os outros garotos desprezavam.
Ia à feira semanal com escassas moedinhas, buscando na banca de revistas usadas o que meus recursos, tão avessos à urgência de minha sede, permitissem.

Pablo Picasso. Menino com um cachorro (detalhe superior). 1905.Como dizia, as mesas ocupavam-se todas, ao redor. Eu ainda associava as pessoas, as coisas, à literatura, um dos pegajosos demônios que não me deixavam. Eu queria o fim dos quixotes. Queria que o mundo fosse, de fato, melhor. Com fatos e feitos melhores. E não necessitasse de loucos idealistas. Também me perguntava se meus semelhantes haviam lido algo do que eu lera ao longo da vida, se na infância lhes acontecia o universo das histórias em quadrinhos, o que bem me lembra ter-me levado de alguma forma aos livros e aos rascunhos de minha fase adulta. Eu juntava restos das revistas em quadrinhos que os outros garotos desprezavam. Queria ler tudo. Ia à feira semanal com escassas moedinhas, buscando, na banca de revistas usadas, o que meus recursos, tão avessos à urgência de minha sede, permitissem, não raro um título escolhido com minúcia, entre outros tantos diamantes. Frustrava-me descobrir, mais tarde, lacunas nas histórias, exemplares a que faltavam as páginas centrais, por vezes o desfecho das aventuras mais criativas, sem contar os palavrões e obscenidades que algum desapegado leitor houvera por bem garatujar sobre certas imagens que eu gostaria de ver intactas. Via-me hoje sentado entre tantos que conversavam, riam e por vezes ruidosamente gargalhavam, sem saberem de minha busca, eu no fundo tentando juntar restos de um mundo que os outros garotos ainda desprezam e usurpam. Nisso, tornei a sentir uma pontada de cólica intestinal, como um súbito borbulhar interno, anunciando desarranjos bem próximos. Aquela bebida provavelmente não me faria bem.

Olhando cada rosto nas outras mesas, sem que nenhum deles me olhasse de volta, eu me perguntava tolamente se teriam nascido aqui, nesta mesma cidade, ou se teriam vindo para cá como um de nós. Pensando bem, isso não faria diferença. Não sei por quê, imaginei Vanessa chegando à metrópole, após uma agradável festinha por sua despedida, na véspera, depois sendo levada por um táxi ao apartamento previamente adquirido por seu pai, claro que um apartamento já mobiliado e decorado. Era incrível que nos encontrássemos, após tanto tempo, nesta maldita cidade.

A conspiração dos felizes

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Guia de leitura

Imagem: Pablo Picasso. Menino com um cachorro (detalhe superior). 1905.

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