Office in a Small City por Edward Hopper

Os morcegos do dia

Os morcegos têm pressa. Não há mais o pouco a pouco.

Afiam os caninos à noite, na obscuridade, abatem-se sobre a manhã incauta do povo.

Georges Seurat. Café concerto. 1888Do edifício mais alto, partia uma nuvem de morcegos que sobrevoava a noite. Desmembrava-se, fragmentava-se numa infinidade de indivíduos negros, ganchos voadores que entravam pelas janelas, invadiam as casas sem que ninguém os percebesse de fato. Frequentando o sono e o silêncio dos que dormem,/ sugando-lhes o sangue pouco a pouco,/ dia após dia.

Eu dormira no chão, sobre um cobertor. As costas estalando, músculos… Acordei primeiro, fiquei olhando o corpo de Vina preenchendo minha cama na diagonal, e senti uma espécie de súbita felicidade. Quase sorri. Ela roncava, de bruços.

Deixei o quarto de mansinho, fui até a sala e liguei a TV, num volume tão baixo que mal suplantava o som quase sumido de minha respiração. O primeiro noticiário da manhã explanava de maneira resumida outro plano econômico de emergência que previa novos sacrifícios, novas privações e arrochos, em tal grau que reclamava ser anunciado por um porta-voz diplomado, discreto e cauteloso, perspicaz o bastante para nos convencer de que a situação do país era mais grave do que a nossa. Da noite para o dia. Recordei o sonho e os versos de Vina. Os morcegos têm pressa. Não há mais o pouco a pouco. Afiam os caninos à noite, na obscuridade, abatem-se sobre a manhã incauta do povo. Olhei pela janela o movimento lá embaixo, o dia que se iniciava. Um plano econômico, um decreto, um jogo de futebol, a morte de uma celebridade: de certa forma, nos apossamos dos eventos. De certa forma, os perdemos. Com o tempo, nos afastamos de sua singularidade e só assimilamos sua tediosa repetição. E eles vão se desvanecendo como as coisas concretas, os objetos e os prédios. As ruas são as mesmas, nem parece que algo mudou. Como pressentir a recessão, a carestia e as crises pela aparência das casas, edifícios, das pessoas que passam? Quem sabe dos mais endividados, do desempregado e seu escasso pão, do suicida? Dia após dia.

De costas para o quarto, debruçado à mesa sobre o papel de rascunho, quando me voltei à voz enrouquecida de sono: Vina estava de pé, nua e preguiçosa, encostada ao batente. Parecia triste.

“Que é isso, que está fazendo?”

“Escrevendo.”

“Não sabia que era poeta também.”

“Não sou. Estou organizando uma espécie de… roteiro, digamos assim. Para ajudar você.”

Vina aproximou-se, olhos inchados.

“Roteiro?”

“Algo assim.”

“Da cidade, pontos de venda?”

Não… Para seus poemas. Temas. Truques.”

“Você disse que não entendia nada de poesia.”

“É fácil ver. Quase todos os seus textos aproveitam-se de palavras como emoção, solidão, esperança e até poesia mesmo. Essas palavras devem ser evitadas ao máximo. Deixadas de lado. Erradicadas, se possível.”

“Ah, é? E por quê? Posso saber?”

“São vulgares. Evidentes demais. Previsíveis à exaustão. É o que todos escreveriam.”

“Você andou lendo meu livro…”

“Você precisa de temas novos. Por isso eu rascunhei esta… este… roteiro, mas que falta fazem as palavras, não é? Chega de pássaros, crepúsculos. Os morcegos sim, Vina. A noite e a rotina do que somos. Pense na infinidade de tipos humanos, tudo desembocando no esquecimento, na aniquilação. E nós sem dinheiro, preocupados com a saúde. Um país desmantelado, um povo arruinado. As sutilezas, não a guerra. A economia. A religião.”

“Você me põe em parafuso desse jeito.”

Contei-lhe o sonho.

“Morcegos, que fantástico! Como nos filmes de terror. Adorei, sabia?”

“Moramos no centro do pesadelo, a capital do país. Quem precisa de filmes de terror? Toma, vê se entende este… roteiro, vá lá. Talvez seja adequado a uma poeta de dezoito anos.”

“Quinze. Isso aqui parece uma lista de compras.”

Quinze?! Essa não… Quinze, vá lá. Crescida o bastante para sugar-me as forças durante a noite. Levantei-me, detive-me por um momento à janela da sala, a vasta cidade, o mundo a que nos prendíamos de alguma forma, por teimosia ou vício, talvez no fundo acreditando sem saber que seria inevitável encontrar alguém.

“Vou fazer um café, morcega Vina.”

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

14. A vida é um vício, não é? – sequência

12. Você me acha cruel? – anterior

Guia de leitura

Imagem: Georges Seurat. Café concerto. 1888.

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