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Controlados pelo costume
Fora disso, o tempo continua com seu estranho gosto pelas metamorfoses.
Os grupos cresciam ao redor. Gargalhadas mecânicas e outras manifestações de frivolidade revelavam-se aos poucos, iam envenenando o ar. Tive vontade de erguer-me de repente e contar a todos ali sobre meus companheiros de mesa. Despi-los, em voz alta, de sua ridícula farsa erótica. Classificá-los escandalosamente, com o auxílio de palavras patéticas e obscenas. Eu os mataria de vergonha se pudesse denunciá-los à vista de todos. Mas que todos, quem? Ririam de mim no final, isso é fácil. Pois são semelhantes e se vestem das mesmas mentiras, assim se confraternizam os cúmplices, os conspiradores, veja-se, novamente, se é preciso que se diga. Vou contar tudo aos jornais.
Irritava-me também o tom de naturalidade com que se referiam a Deus e a outros mecanismos abstratos, sempre em seu favor, e como fosse deles a verdade, sim, como se não os obscurecesse qualquer outra alternativa e todo questionamento não passasse de um vicioso retrocesso. Mas a crença não é a verdade – ou não seria crença: e seria a verdade. Todos a possuem, contra o resto dos povos. Pois têm livros que as registram, às “verdades”, e eis que são volumes sagrados, que foi cada um deles redigido sob inspiração divina, quando não deixados na Terra por algum anjo, sobre uma pedra achatada ou qualquer outra porcaria que o valha. E têm provas! E testemunhos. E razão, claro. Mas há um pequeno grande problema nisso tudo. Se os hinduístas, por exemplo, tiverem razão, terão sido dois ou três os deuses criadores do universo. Se os budistas, por sua vez, estiverem certos, nenhum deus existe, e tudo que se cultivou durante séculos no cristianismo terá sido vão. Na mesma tese, se os católicos romanos estiverem certos, os reencarnacionistas terão de se contentar com uma única passagem pela Terra. Se os evangélicos estiverem certos, os judeus terão de pedir perdão a Jesus, imagine-se a cena. E se os islâmicos estiverem certos, Deus nos ajude.
Uns rapazes, na mesa ao lado, miravam, de quando em quando, as pernas perfeitas de Vanessa, provavelmente comentando entre si a generosa gratuidade daquele espetáculo. Eu quase podia ver, nos olhos deles, os insanos e irresistíveis desejos que riscam, como um relâmpago invisível, a obscuridade do inconsciente, sinais do cio intratável dos animais selvagens, os lobos que éramos ontem, hoje reprimidos pelos costumes. Nesse momento, e como parte do que eu supunha adivinhar nos olhos alheios, minha memória apresentava-me, mais uma vez e com adorável perfeição, o volume exato das coxas dela, a pele lisa dos joelhos, as bem proporcionadas pernas, enfim, tudo por inteiro, que era como os discretos predadores da mesa mais próxima podiam vê-la agora, de onde estavam. Um deles parecia particularmente interessado em seus pés, como se nela nada merecesse ser menosprezado. De minha parte, creio que ele tinha razão. Vanessa era uma mulher deliciosa, digna de ser contemplada em detalhes, digna de ser preservada não entre palavras como as de textos rudimentares como os meus, mas em alguma imagem sem artifícios, uma tela, uma fotografia talvez, já que, fora disso, o tempo continua com seu estranho gosto pelas metamorfoses.
A conspiração dos felizes
36. Entre fetiches e delírios, tudo muito secreto – sequência
34. Persona non grata – mas eu já sabia – anterior
Imagem: Jan Gowthorpe. Café parisiense.
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