Office in a Small City por Edward Hopper

Cuidado: ele tem um guarda-chuva

Deixam cilindros na Lua, plaquinhas em Marte, latarias em órbita…
Aonde pensam que vão, se saírem daqui?

Francisco de Goya. Dois velhos tomando sopa. 1823.

PORTA-VOZ ADMITE QUE GOVERNO NÃO TEM MAIS CONTROLE SOBRE A CRISE

Ele poderia ter acrescentado: e quer o esforço de todos no sentido de… – como sempre fazem. Foi negligente, talvez ingênuo. À parte isso, jornais expostos em série traziam manchetes diversificadas, destoantes, como se não tratassem de um mesmo país e de um mesmo momento. A imprensa também havia perdido o controle sobre os fatos – ou parecia não se interessar muito por aprofundamentos. Ninguém sabia mais o que era verdadeiramente importante, um tempo em que…

“Ah, meu Deus! Ah, meu Deus do céu!”

Um esbarrão, uma espécie de abraço desastrado seguido de um golpe de guarda-chuva.

“O senhor não olha por onde anda? Ah, meu Deus!”

“Eu?”, disse eu.

Outro golpe do qual me desviei a tempo.

“Não vê que sou um velho cego, doente? Deus do céu! Fazer isso com um velho cego…”

“Isso o quê? Foi o senhor quem me esbarrou e… O senhor não parece nada doente.”

“Doente sim senhor! Doente sim senhor!”

Deu-me com o guarda-chuva no ombro. Nem bengala nem óculos escuros. Era baixo, citrino, penugem branca recobrindo o crânio, olhos esgazeados de estátua. Paletó apertado, antigo, fora de moda e de estação, fora de qualquer coisa parecida com o que estávamos vivendo, enfim. E guarda-chuva.

“Quer parar de me agredir?”, disse eu irritado. “Estou aqui vendo os jornais, e o senhor…”

“Ah, meu Deus, ah, meu Deus…”, fez ele subitamente desconsolado. “Ninguém mais respeita um velho cego e doente. Ninguém mais tem educação neste país, olhe só para mim, Deus do céu, fazer isso com um velho cego…”, contraiu o rosto numa expressão de choro, cristalizou-se, fez-se uma espécie de passa enrugada.

“Tudo bem, me desculpe. Não quis ofender o senhor”, disse eu fingindo arrependimento. Queria mandá-lo aos diabos.

“Hoje em dia ninguém mais, ninguém mais…”

“Pare de chorar, por favor. O senhor quer atravessar a rua, é isso?”

Num instante, tornou à expressão anterior: perdeu o tom de lamúria, e as lágrimas desapareceram.

“Atravesso a rua que eu quiser, sozinho, está ouvindo? Não preciso de ninguém, está ouvindo? Atravesso a rua que eu quiser.”

“Tudo bem então.”

“Mas o senhor pode me ajudar a encontrar o Largo, preciso tomar meu ônibus. Vamos, vamos. Não há tempo a perder.”

Enlaçou-me o braço, puxou-me em direção ao Largo, como se ele é que me conduzisse. Se eu não estivesse vendo seus olhos mortos, juraria que era um impostor.

“Há mais de vinte anos eu circulo por estas ruas, compreendeu? Mesmo antes disso, nunca vi nosso país numa situação dessas. Deus do céu! Olhe para mim, que futuro tenho eu num país assim, me diga, ah, meu Deus!”

“O senhor anda por aqui há vinte anos… Deve saber onde fica o Largo.”

Bateu-me com o guarda-chuva.

“Acha que estou mentindo, não é? Duvidando de um velho cego, não é? Cego e doente.”

“Mais devagar, por favor. O senhor não pode ter tanta pressa. Qual é o seu compromisso afinal?”

“Não é da sua conta, está ouvindo? Nada de sua conta. Mania de perguntar tudo.”

Ia brandindo o temível guarda-chuva enquanto falava. Como todo velhinho, dizia que sua época era melhor do que a nossa, as pessoas eram melhores, as escolas eram melhores, as famílias eram todas muito unidas, o mundo não havia se corrompido ainda… – e outras falácias do gênero.

“Gostaria de saber quando foi isso.”

“Quieto, não duvide de mim. Mal-educado. Olhe para este mundo, que raio de mundo é este? Crianças morrendo doentes, e o governo ajudando os bancos, importando remédios podres, comprando satélites. Enviam espaçonaves para os confins do judas com mensagens de paz e amor, se é possível! Esperam que outros ratos brancos, outros vermes como nós, encontrem aqueles disquinhos no meio de uma caralhada de galáxias! Compreendeu? Não passam de uns retardados.”

“O senhor não deve estar falando do mesmo governo…”

“Deixam cilindros na Lua, plaquinhas em Marte, latarias em órbita… Aonde pensam que vão, se saírem daqui? Estações com esses nomes… Freedom… Myr! Logo chegam as guerras. Lá mesmo, lá em cima, foi o que eu disse. Já não tem graça fazer guerra aqui embaixo. Deus do céu, antigamente havia respeito. Havia famílias. Educação.”

“E guerras.”

“Quem disse que não? Quem disse que não?”

“O senhor quer, por favor, baixar esse maldito guarda-chuva? Vou acabar tirando de sua mão, quebro em dois, jogo às rodas do primeiro ônibus que passar, quer ver?”

“Está vendo? Está vendo só? Não há mais respeito, ah, meu Deus! Falar assim com um velho cego…”

Pensei em tentar extrair dele algo sobre a política do passado, à maneira do Winston de Orwell, no bar dos proles. Mas logo vi que isso seria inútil. Talvez não guardasse mais informações do que eu, talvez discorresse sobre casos particulares, sem relevância. De qualquer forma, a conversa dele me fez lembrar a placa que os norte-americanos deixaram na Lua, assinada pelo presidente Nixon, “Viemos em paz, em nome de toda a humanidade”, enquanto, em seu planeta natal, promoviam uma guerra sangrenta e sem sentido para a qual enviavam seus jovens, em nome de um embuste. Por um momento, considerei que a oratória indignada daquele velho resmungão já me servia a despertar ironias históricas ou algo assim. Mas o que eu queria mesmo era livrar-me dele. Disse-lhe que aquele era o seu ônibus, mas ele só me soltou e subiu depois de o motorista tê-lo confirmado. Uma praga.

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

8. Coisas de rua e encontros desastrados  – sequência

6. Trágico ou apenas… menos cômico – anterior

Guia de leitura

Imagem: Francisco de Goya. Dois velhos tomando sopa. 1823.

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