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Coisas de rua e encontros desastrados
Quero estar sozinho o mais possível. Viver minha única vida.
A tarde vinha se mesclando à noite, o mundo ia perdendo seus contornos. Eu caminhava em direção a um amontoado de entulho deixado na calçada, suspirava de cansaço por qualquer mísero obstáculo que me forçasse a desviar uns passos, depois vi que era um saco de lixo grande e disforme. Aproximei-me aos poucos: devia ser uma mochila encardida, cáqui ou marrom, cor de terra. Não, uma espécie de fardo com uma corcunda. Desviei-me ao passar por aquilo que finalmente eu via de perto. Era uma pessoa.
A primeira amostra da desgraça, logo na manhã seguinte, veio-me encarnada na mendiga malcheirosa que frequenta os arredores do escritório. Ela aborda os passantes, estende a mão esquálida, pragueja contra os que não colaboram. Sua filha maior, uns cinco anos, traz a menor pela mão. O menino chorão, ainda de chupeta, carrega uma caixa, aparentemente pesada, por toda parte – seu pranto é miúdo, contínuo e cheio de desalento. O mais novo, bebê de colo, é usado como isca para comover os mais sensíveis. Nos dias de inverno, ela o despe, ele chora de frio e vento, melado de secreções, e isso costuma render à mãe um lucro extra.
Um colega diz que não devemos ter pena dessas crianças, pois elas nos arrombarão a porta, nos assaltarão, nos matarão um dia, no futuro. Grande consolo. E ele é um rapaz bem vestido, delicado, desses que dizem as pessoas isto, as pessoas aquilo, sempre começa algo com as pessoas, as pessoas… Mas, claro, não é o único. Conheço muitos tipos insuportáveis, sou um cara meio azarado com isso.
Livro-me de todos eles no intervalo de almoço. Gosto de estar sozinho. Não quero acompanhá-los, não quero que me acompanhem. Detesto pretextos, justificativas, meias palavras, e isso é o que mais se usa em companhia de outrem. Quero estar sozinho o mais possível. Viver minha única vida.
Falando em encontrar alguém, Medina e seu sorriso engatilhado. O próprio. Se eu entrasse nessa galeria… Ou nesse… Tarde demais. Ele já me viu.
“Então, como vão as coisas? Trabalhando muito?”
“Infelizmente. E você?”
“Também, graças a Deus. Com saúde.”
“Muito bem. Eu agora… Amanhã nós…”
“E o Delfino, hein?”
“O quê? O que tem o Delfino?”
“O Delfino, ora. Que coisa, hein?”
Ele espera que eu lhe diga algo mais sobre o Delfino, que volte a esse assunto cinzento que de certa forma o alimenta, que a mim incomoda e deprime.
“Olha, Medina. Me desculpe a pressa, hoje estou correndo feito má notícia. Amanhã a gente se encontra de novo, não é?” (Amanhã, tomo outro caminho.)
“Se Deus quiser…”
“Muito bem. Então… Até amanhã e… Boa sorte.”
Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes) – Guia de leitura
9. I Ching, estrelas, patrão – sequência
7. Cuidado: ele tem um guarda-chuva – anterior
Imagem: Lorraine Christie. 47 minutos.
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