Office in a Small City por Edward Hopper

Música suave e um vulto do passado

Como se tudo pudesse ser perdoado.
Como se todos pudessem redimir-se, sem nenhum esforço para isso.

Pablo Picasso. Minha querida (detalhe superior). 1912.E ali estávamos os três. Eu, com meu passado de humilhações e traumas inexpugnáveis, debatendo-me contra incessantes dificuldades financeiras, havia atravessado todo aquele período, chegara até ali, de alguma forma – e por nada. Eles, com suas vidas transcorrendo assim, suaves, desde suas origens tranquilas, encaminhados desde sempre à felicidade e ao conforto, tendo inclusive como definitivamente esquecidos alguns dos momentos mais constrangedores de minha vida, a que por acaso tocara-lhes a margem da convivência, em um colégio estadual. Ao fundo, por trás de onde agora nos encontrávamos, a rádio mantinha vivas agradáveis canções, algumas de melodia belíssima, como se as fizesse fluir de entre as ramagens. Como se tudo pudesse ser perdoado. Como se todos pudessem redimir-se, sem nenhum esforço para isso. Mas uma bactéria obscura, energizada com desejos violentos, ia aos poucos se reproduzindo e se multiplicando em meus nervos.

Não há muito tempo, eu encontrara outro de nossa turma. Ele havia se tornado um ativista político, meio escritor, meio homem de sindicatos e coisas do gênero. Posso dizer que nos alegramos de fato ao nos defrontarmos casualmente no bar obscuro, próximo à gráfica de onde partiam os panfletos e tabloides dos quais ele participava. Fui apresentado a seus companheiros de mesa, que só no início prestaram alguma atenção em mim, como se logo me liberassem de suas suspeitas, percebendo quão inofensivo eu era. Mesmo esse colega, particularmente, não se mostrava propenso a influenciar-me, o que já era de se esperar, pois estava visivelmente embriagado, e eu talvez só lhe interessasse vagamente como um vulto do passado ao qual não valeria a pena dizer muito. Por outro lado, seguia eu, o tal vulto, ainda esmagado pela mesma situação social, cujas condições ele e os seus prometiam corrigir e transformar, na infinita tentativa de conscientizar o povo. Mas sempre falta muito. E ninguém tem tanta consciência quanto os homens do poder. Também me estranhou que ele parecesse cansado. De um cansaço especial, não só desse dia. E não muito passível de descrição, salvo por alguma menção ao seu olhar e a algum breve movimento de cabeça, algo como se estivesse a ponto de irromper em risadas ou deixar-se cair drasticamente sobre a mesa. Mais me surpreendeu quando, a certa altura da conversa, falou-me, quase numa confidência e com certa dificuldade, que nem todos do nosso lado eram bons, e que nem todos do lado deles eram ruins. Ele estava mesmo muito bêbado. Eu não podia mais do que deixá-lo brincar de ser o ativista consciente, o filósofo social, o guerrilheiro à paisana, tudo que lhe parecesse importante, pois ele tinha uma estranha necessidade disso. Em nenhum momento eu lhe recordei os resultados do mundo. Nem quis incomodá-lo com a dura constatação de como éramos eu, ele e outros como nós, inofensivos, pois certamente não iria compreender-me. Não se tratava de defender os ideais de um povo, que nosso povo não tem nenhum ideal. Era preciso, no entanto, posicionar-se ante pessoas confusas, incoerentes, que mais sofrem as consequências da injustiça social e que, ainda assim, por algum estranho motivo, elegem os mesmos promotores de tais situações para governá-los. Vem alguém e nos diz: “Eles não sabem, ignoram.”. Pois bem, portanto basta dizer-lhes. Então fica mais difícil aceitar que eles não pretendiam saber. Quanto aos governantes, estes lidam com sua costumeira habilidade em relação aos descontentes e aos opositores. E nos deixam aqui, com nossas pequenas ironias, nossas discussões noite adentro, nossas caricaturas e anedotas cáusticas até o deboche, porque sabem perfeitamente que somos assim e só assim, não há perigo. Ora, era claro que eu não poderia dizer-lhe isso. Enquanto fingia acompanhá-lo, entre certas anedotas e trocadilhos, envolvendo quadros políticos e partidos, tive pena dele e de seus sonhos, tive pena de nós todos. Ele era apenas mais um de nossa mesma idade, era o que tínhamos em comum: o ano de nascimento.

A conspiração dos felizes

33. Cantiga medieval de tristes vassalos – sequência

31. Em parte, o destino – anterior

Guia de leitura

Imagem: Pablo Picasso. Minha querida (detalhe superior). 1912.

por

Publicado em

Leia também:

Comentários

Comentar