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Sempre muito entendidos
Meu ódio ia voltando aos poucos.
O fato era que Copérnico queria parecer um sujeito culto, para a admiração de Vanessa. E para minha própria admiração, sob outro aspecto. Entrou a falar do que lhe parecia mais acessível, algo aparentemente sob seu domínio: novelas de ficção científica! Para irritá-lo e frustrá-lo, além de minha inescrupulosa intromissão, fiz questão de atirar-lhe à cara que o primeiro texto do gênero se chamava Somnium, descrevia a superfície da Lua e fora redigido há mais de três séculos não por um literato, mas por Johannes Kepler. Perguntei-lhe se o havia lido, claro.
“Cultura inútil, não é?”, disse Vanessa cinicamente, agora mais propensa a atacar-me. E sempre pronta a defendê-lo.
“Kepler?”, estranhou Copérnico.
“Não ter cultura também é inútil”, disse eu tão cinicamente quanto ela, fazendo-os ver que eles, pelo menos, não dominavam este lado da galáxia. “Fascinante, não? E pensar que tanta gente se interessa por artes marciais…”
Claro que eles não entenderam a associação. Copérnico ainda criava oportunidades para mostrar-se menos fútil, lembrando que gostava de digerir aqueles romances todos, fazendo-se conhecedor da pronúncia correta dos nomes dos autores. Coitado. Eu nem conseguia irritar-me, só de assistir ao patético de seus esforços desencontrados para fazer-se passar por um sujeito inteligente e conhecedor de literatura, coisa que nem deveria tentar. Estava claro que ele se aproveitava do momento e de minha pessoa, a quem poderia supostamente anular, não permitindo que qualquer sinal de superioridade partisse de minha fala, de minhas palavras, entendendo-se superioridade como qualquer conhecimento extra que a eles não competisse. Mas o infeliz desmentia-se constantemente, pois acabara de confessar seus autores prediletos, inclusive mencionando nosso conterrâneo, o doutor Paschoal. Eu quase podia adivinhar. Eles costumam ver televisão o dia todo, e, quando acompanham os críticos do suplemento artístico-cultural de um periódico qualquer, entendem-se como intelectuais. Talvez eu esteja exagerando, como sempre. Acho que o que mais me incomodava nele era seu timbre nasalado, aquela sua voz monótona, que daria sono a uma garrafa térmica.
“… porque estou só de passagem”, disse ele virando-se para mim, “e aproveitei para aceitar o convite dela, conhecer o apartamento…”
Eu nem estava prestando atenção – e só mesmo um desmiolado como ele tentaria explicar e disfarçar uma situação tão evidente. Um paquiderme.
“Ah, é?”
“É.”
Ah, cretino, pensa que eu não sei? Está escrito em suas testas e no melhor de meu idioma o que vocês dois pretendem fazer logo mais.
Eu me sentia na linha limítrofe entre o pensar e o falar, com receio de confundir-me. Meu ódio ia voltando aos poucos.
A conspiração dos felizes
31. Em parte, o destino– sequência
29. Com o tempo, comecei a mentir – anterior
Imagem: René Magritte. Os amantes. 1928.
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