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Vina entre os morcegos. Abertura
Nunca reagiu, nunca agrediu, nunca namorou.
A maneira trágica, brutal e bizarra com que nosso amigo Delfino tratou de resolver todos os seus problemas e livrar-se do mundo foi confirmada por Medina em um de nossos desastrados encontros de rua.
“Soube do Delfino?”, Medina quase sorriu. Seu sorriso é como um cacoete. Tem algo de automático e instintivo, como se solta o ar.
“Fazer o quê, não é?”, eu disse. “Agora é tarde.”
“Puxa, o Delfino, hein?”, Medina balançava a cabeça, desconsolado. “Delfino, quem diria…”
Esbarro nele com certa frequência, trabalhamos no centro da cidade, mesma rua, intervalo de almoço.
“O Delfino, que coisa…”
“Foi um momento de desespero”, comentei, à maneira dos antigos.
Mas ele só fazia repetir o nome do Delfino.
“Não via o Delfino há séculos”, eu disse. “Que andava fazendo?”
“Meteu-se a abrir seu próprio negócio, sua microempresa, sabe como é… Atolou-se em dívidas, deu nisso.”
Medina contou-me que nosso colega de escola (estudamos juntos por alguns anos, Delfino, o morto, Medina e eu, ainda vivos) ia bem com sua microempresa até que o último plano econômico o flagrasse em num momento crucial de seus investimentos. Os juros se desenvolveram, as vendas caíram e, desde então, durante todo o ano seguinte, ele tentara reerguer-se com o auxílio dos bancos, que lhe franquearam créditos pagáveis a juros, taxas e comissões aparentemente razoáveis, mas que duplicavam rapidamente o saldo devedor com truques que a política econômica apenas fazia favorecer. Pobre Delfino, ele me parecia mais inteligente. Acreditar no governo, acreditar nos bancos…
“Um momento de desespero”, repeti. “E se você pensar… A maior parte dos nossos bandidos de elite deixa o país sem nenhum problema. Ele, que era esforçado e honesto, poderia ter feito o mesmo.”
“Mas como?”, sorriu Medina. “Ele não tinha nem o dinheiro da passagem.”
Medina, seu santo sorriso. Córneas sanguíneas, cabelos anunciando fios grisalhos, o rosto aberto nesse sorriso solto, expansivo e contagiante. Não se aborrece com nada, não desconfia de nada. Nunca reagiu, nunca agrediu, nunca namorou. Sempre sorriu manso, falou manso, sempre suportou com natural otimismo o que o destino e os governantes lhe reservaram, como é próprio dos que veem sempre um lado bom no que não é bom, e nada mais têm a dizer. Quando lhe pergunto como vão as coisas, ele responde: “Vai-se indo…” ou “Na luta, com a graça de Deus.” ou “Graças a Deus, bem demais, com saúde e trabalhando.”. Olho para ele, penso: é um milagre que tenha sobrevivido.
Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)
2. Que sonhos teriam valido a pena? – sequência
Imagem: Darren Thompson. NYNY #20.
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