Office in a Small City por Edward Hopper

Círculos sucessivos de imunidades

O tempo que os contém, a esses homens e às suas opiniões, não é mensurável, embora pareça ser.
O fato de estarem vivos transcende qualquer medição. E a existência humana não é um negócio.

Quico Soares. Deus com fiado. 2014.Estudamos os três na mesma classe do último ano. Copérnico Henrique Domingos Coelho dos Reis. Não, não é brincadeira. Tudo isso é o nome de uma só pessoa.

Eu, até hoje, sei o nome completo de ambos, mesmo após tanto tempo. Mas duvido que se lembrem sequer de meu primeiro, apesar de seu aspecto incomum. Se forçasse um pouco mais, talvez dissesse seus números de ordem na chamada, até o prenome de seus pais, que eu ouvia por acaso. É que, por mais ignorado que eu fosse, e talvez por isso mesmo, sempre me preocupei em saber mais sobre os outros. Memorizava seus nomes, sobrenomes, observava seus hábitos e relações, tentando entender o motivo de suas alegrias – por vezes fingindo estar alegre ao lado deles – e principalmente vislumbrar o sentido de suas conversas mais sérias. Era notável a facilidade com que se transformavam. E ninguém se atrevia a romper um desses climas de seriedade com alguma troça esculhambada ou vice-versa, como se tudo já fosse previamente combinado assim, ninguém sabia por quem, cada situação associada a tais e tais atitudes, a expressões faciais típicas, e assim por diante. Com isso, comecei a perceber que eles todos não passavam de saudáveis figuras de papelão, identificando-se entre si por suas próprias limitações, pobres prolongamentos que eram dos anseios mundanos de uma geração anterior, seus pais, também estéreis. Para se ter uma ideia, naquela idade, eles já falavam em negócios, sucesso, futuro, e alguns nunca mais se curaram. Continuaram, ao longo da vida, referindo-se a este ou aquele empresário, este ou aquele político, este ou aquele ator, cantor, jogador ou coisa que o valha, que valem mesmo, quase sendo eles próprios uma empresa, rendendo milhões, talvez porque signifiquem monetariamente o mesmo que inúmeros outros somados. E com absurdos tais, assim incutidos em suas superfícies, agiam e pensavam como se tudo fossem empresas, como se tudo fossem negócios, sem jamais questionar a grande peça que o infindável tempo lhes vinha pregando a cada dia, e como se a própria condição da existência humana fosse alicerçada em regras de mercado, oferta e demanda, enfim, em negócios. Até hoje, entre adultos como esses, tudo é comentado entre convicções, mencionando-se dados, números e tendências, trocando-se termos específicos sobre verdades aparentemente inquestionáveis. Mas o tempo que os contém, a esses homens e às suas opiniões, não é mensurável, embora pareça ser. O fato de estarem vivos transcende qualquer medição. E a existência humana não é um negócio.

Eu era muito ingênuo, como já disse. E sentia como se pudesse aprender alguma coisa deles, de alguma forma iniciar-me entre o resto dos homens, e passar a ser como todos, integrando o conjunto de costumes que os uniam. Não consegui nada disso. Não me integrei a nada. Não me iniciei em nada. Não aprendi nada. Não cheguei a nenhuma conclusão, salvo que eram todos uns palermas sem criatividade. E sou grato à minha sorte, até certo ponto. A solidão também tem seu preço.

Copérnico Henrique Domingos Coelho dos Reis. Tudo isso. Como Vanessa. Aliás, os dois são do tipo exigente com relação a certas referências e minúcias de ordem pessoal, como em geral são os de seu meio, e ficam por vezes indignados, irritados até, quando alguém omite um de seus sobrenomes num formulário, ficha cadastral ou porcaria que o valha. Normalmente, as pessoas dessa laia têm esses nomes extensos, espichados, alguns com sobrenomes hifenizados, cuja sonoridade faz pensar que sejam uma só palavra ou uma alusão a alguma antiga Casa Real da Europa, pois as famílias querem todas preservar o sobrenome de uma e de outra, o que não significa nada nem tem importância para o resto do mundo, coisa que eles não entendem de jeito nenhum.

Copérnico Henrique… Aliás, seus pais, apesar do mau gosto, deviam ser mesmo muito irônicos. Ele tinha um irmão chamado Edison, uma autêntica toupeira, incapaz de ideias próprias. Copérnico também era um tipo assim. Acho que jamais teve uma única ideia em toda a sua vida. E talvez eu não tenha conhecido na escola um sujeito tão apagado de brilho quanto ele. O fato é que Copérnico não tem sal nem açúcar, é uma espécie de múmia sem iniciativa, e precisa ser guiado pelos familiares e amigos de seu meio, o meio nepotista e ameno de onde vem. Naturalmente, estava sempre sendo assistido para que nada fracassasse em sua vida, apesar dele. Por ser pobre de raciocínio, não conseguia boas notas, mas, com o auxílio de competentes professores particulares, acabava empurrado à frente, ano após ano. No futebol, todos o perdoavam pelas jogadas horríveis que fazia, nas raras oportunidades em que se encontrava com a bola. Mesmo quando isso levava seu time a desastrosas derrotas. Sim, todos o perdoavam. Todos! Não só os de seu meio. Mas isso já faz parte de algum outro fenômeno que ninguém entende. Era assim: quando ele estragava a partida, lembravam que ao menos não era egoísta como aqueles que tomavam a bola para si o tempo todo. Quando parecia egoísta, diziam que não incomodava ninguém. Quando começava a incomodar, achavam que, afinal, era um bom sujeito. E assim, num círculo sucessivo de imunidades. Mas quem entende a mentalidade dos súditos?

Copérnico havia sido manequim infantojuvenil certa vez. Publicaram-se fotos dele em tabloides de liquidação e em anúncios no jornaleco de nossa cidade. As meninas da escola ficaram taradas, e o adoravam por isso. Mas eu, eu me roía de inveja desses bonecos bem-sucedidos. Naquele tempo, sonhava ser como eles – era muito ingênuo, e já disse isso. (Já disse isso até demais, reconheço. Mas não espero que me perdoem.) Eu o invejava principalmente por entender que, com minha feiura, meu corpo ossudo e desengonçado, minha pobreza, jamais estaria no rol desses privilegiados, nunca faria parte dos valores eleitos pela humanidade. E ficava em meu canto, tramando perversidades, imaginando uma maneira sangrenta de aniquilá-los, esmagá-los a todos, oprimi-los, tanto que, por essa época, pensei em fazer carreira no Exército – mas fui recusado por ser muito magro, débil, e por minha dentição deplorável.

Por incrível que pareça, não creio que haja mais o que se diga sobre ele que não torne este capítulo ainda mais enfadonho. Copérnico Henrique Domingos Coelho dos Reis. Tudo isso.

Só isso.

A conspiração dos felizes

24. O homem importuno – sequência

22. Um sonho fantástico, só o que podia ser – anterior

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Imagem: Quico Soares. Deus com fiado. 2014.

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