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Cortázar – Verão
Um de meus autores prediletos, entre os mais criativos prosadores do século 20, assumiu as inovações estruturais do conto e do romance sem perder sua visão de mundo sempre aguda, irônica e por vezes quase infantil diante de situações beirando o colapso, como se estivesse sempre prestes a rir da vida. Em Último round, um desses livros-colagem, que ele chamava de almanaque, confessa-se seguidor das técnicas de Edgar Allan Poe, com as quais compôs alguns de seus contos mais memoráveis, com economia de recursos narrativos visando chegar mais rapidamente ao clímax – por vezes tão disfarçado que nos desvia da iminência de um impacto posterior. A amostra citada é parte do conto “Verão”, da coletânea Octaedro. Mariano e Zulma, um casal tranquilo que vive há muitos anos em sua casa de campo, recebe a filha de um amigo, uma criança que irá pernoitar ali até que seu pai venha buscá-la na manhã seguinte. O que ocorre nessa noite é de tirar o sono – não apenas dos personagens, mas do leitor que se aventura a conhecer parte do universo imprevisível de Cortázar.
Quando Zulma ouviu o primeiro barulho, Mariano estava procurando nas pilhas de discos, tinha uma sonata de Beethoven que não escutara naquele verão. Ficou com a mão no ar, olhou para Zulma. O barulho parecia na escada de pedra do jardim, mas àquela hora ninguém vinha à cabana, nunca ninguém vinha de noite. Da cozinha acendeu a lâmpada que iluminava a parte mais próxima do jardim, não viu nada e apagou-a. Um cachorro que estava procurando comida, disse Zulma. Soava esquisito, assim como alguém bufando, disse Mariano. No janelão chicoteou uma enorme mancha branca, Zulma sufocou um grito, Mariano de costas voltou-se tarde demais, o vidro refletia só os quadros e os móveis da sala. Não teve tempo de perguntar, o bufo soou perto da parede que dava para o norte, um relincho abafado como o grito de Zulma que tinha as mãos contra a boca e se grudava à parede do fundo, olhando fixo para o janelão. É um cavalo, disse Mariano sem acreditar, parece um cavalo, ouça os cascos, está galopando no jardim. As crinas, os beiços como que sangrando, uma enorme cabeça branca roçava o janelão, o cavalo apenas olhou para eles, a mancha branca apagou-se para a direita, ouviram outra vez os cascos, um brusco silêncio do lado da escada de pedra, o relincho, a corrida. Mas não há cavalos por aqui, disse Mariano […] Quer entrar, disse Zulma grudada à parede do fundo. Mas não, que bobagem, deve ter fugido de alguma chácara do vale e veio até a luz. Estou lhe dizendo que quer entrar, está louco e quer entrar. […] o sono veio antes, sem imagens, o nada total do qual saiu num dado momento despertado por um pânico indescritível, a pressão dos dedos de Zulma num ombro, o arfar. Quase antes de compreender já estava escutando a noite, o perfeito silêncio pontilhado pelos grilos. Durma, Zulma, não há nada, você deve ter sonhado. Insistia que ela concordasse, que tornasse a se estender de costas para ele, agora que de repente retirara a mão e estava sentada, rígida, olhando para a porta fechada. Levantou-se ao mesmo tempo que Zulma, incapaz de impedir que ela abrisse a porta e fosse até o começo da escada, grudado a ela e perguntando-se vagamente se não seria melhor esbofeteá-la, trazê-la à força até a cama, dominar finalmente tanta distância petrificada. Na metade da escada Zulma parou, segurando-se ao corrimão. Você sabe por que é que a menina está aí? Com uma voz que ainda devia pertencer ao pesadelo. A menina? Outros dois degraus, já quase na curva do corrimão que se abria em cima da cozinha. Zulma, por favor. E a voz quebrada, quase de falsete, está aí para deixá-lo entrar, eu digo que vai deixá-lo entrar.
Julio Cortázar, Verão.
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