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Mulheres distraídas, visões proibidas
E sempre eu mesmo trato de desvencilhar-me de meus sentimentos sozinho, não há ninguém que me ajude ou que o faça por mim.
Enquanto procurava dissimular, meio sem jeito e sem saber ainda o que lhe dizer em seguida, notei que ela ria mais do que antes, mesmo depois de eu ter me calado, chegando mesmo a cobrir a boca com a mão e a menear levemente a cabeça. Eu poderia dizer que ela estava perdendo o fôlego, a seu modo. Ai de mim! O que diabos ela estaria lembrando? (Tive até vontade de perguntar.) Tudo aquilo só confirmava minha observação anterior e meus desgostos: ela continuava rindo de mim em segredo.
Então, para não deixar que tudo terminasse desastradamente e de vez, pois foi outro momento em que tive ímpetos de dar o fora dali, resolvi cortar abruptamente o clima de meus próprios sentimentos, tirando a caneta do bolso, como num gesto arrebatador. Eu sempre ando com uma caneta no bolso. E sempre eu mesmo trato de desvencilhar-me de meus sentimentos sozinho, não há ninguém que me ajude ou que o faça por mim.
“Olhe, vou lhe dar meu endereço”, disse eu de repente e firme. Assim. Sem mais nem menos. Sem que ela me pedisse. Sem desculpas, sem preâmbulos, sem vergonha nenhuma.
Mas não achei nenhum papel no bolso. Eu sempre ando com algum papel no bolso.
“Você está com a sua agenda aí?”
Vanessa ainda tinha os lábios fixos, num sorriso remanescente, de boca fechada, e passou a vasculhar a bolsa enquanto eu esperava de caneta em punho, numa imobilidade ridícula. Quanto mais ela demorava a encontrar o que pretendia, mais eu perdia o controle sobre minha ansiedade constrangida, nervosa. O dia já estava me fazendo mal.
“Deve estar… Deve estar…”, ela ruminava.
E procurou, procurou. Procurou mais.
“Deve estar…”
Da bolsa ela tirou uma bolsinha e da bolsinha ela tirou uma carteira dobrada em três e da carteira dobrada em três ela tirou um caderninho tão minúsculo que quase podia ser escondido em uma só mão. Era tão pequeno e fino que nele provavelmente só caberiam endereços de mosquitos. Mas vi que ela voltou atrás, tornando-o ao seu lugar, e continuou fuçando em busca de alguma outra coisa. Talvez não quisesse ocupar mais espaço de sua agenda de insetos com um endereço ordinário como o meu.
Enquanto ela procurava e procurava, assaltaram-me novas sensações excitantes, tão inesperadamente como se esvaneceriam no instante seguinte com uma palavra a mais que ela dissesse. Talvez, como fruto da primavera e de suas secretas influências, Vanessa atraía-me a qualquer momento, algo mais do que o normal, e sem que fosse preciso concentrar-me nela. Por estar distraída e curvada sobre a bolsa, a linha do decote afrouxava-se sem que ela o percebesse. Ou fingia não perceber, quem sabe – o que, para mim, não deveria fazer diferença, que a visões dessas, dadas assim, não se devem vincular muitos questionamentos.
“Deve estar, deve estar…”
Com isso, eu podia ver um pouco mais de seus seios. Mesmo antes que ela se abaixasse, já se delineavam os mamilos sob o tecido, salientes, com um mínimo de sombra. Eram pequenos pontos, delicados, mas do tipo que se dilatam e se eriçam facilmente. Só lamentei não estar de pé a certa distância, em outro ângulo que não aquele, para tornar a apreciar-lhe as pernas perfeitas, belas por si próprias, sem artificialismos, meias de seda ou bronzeados, sem mais, as coxas como as recordava haver visto quando chegara, cortadas pela bainha reta e generosa da saia curta, pois eu, de onde estava, não podia mais admirá-las, salvo se fizesse cair um objeto ao chão e me pusesse a engatinhar sob a mesa – isso sim seria um pouco demais, advertiu-me a tempo o bom senso que restava. Tudo isso encheu-me a boca de saliva muito líquida, proporcionando-me uns primeiros movimentos de ereção, reorganizando as dobras da cueca e inflando aos poucos a forma da calça na região do zíper. Foi muito agradável. Eu me embriagava com a criminosa sensação de poder imaginar o que bem entendesse, tendo Vanessa como alvo. Ela, tão sensualmente distraída, se pudesse saber, se de longe pudesse supor que mulheres distraídas eram um de meus pontos fracos, olhando o mundo por uma janela ou observando os próprios pés, até mesmo lendo um romance, desde que permanecessem absortas, que isso fazia parte de minha coleção de secretos motivos para amar a beleza. Eu sabia que os desenhistas tinham coleções semelhantes – alguém me dissera certa vez que eu levava jeito para o desenho, no tempo em que eu ainda acreditava. Por sorte, não era difícil encontrar mulheres distraídas de mim. E talvez, por isso mesmo, tenha aprendido a amá-las dessa maneira, de acordo com minha condição solitária.
“Não, mas deve estar…”
Alguns milhões de anos de evolução física, algumas décadas de decadência intelectual, mistérios que gostamos de inventar, uma certa confusão que nos faz amar o sexo, a rosa louca que move o mundo, e ali estava eu, outra vez, diante de uma fêmea. Vanessa era parte da primavera, de meu domingo de brisas, apesar de tudo. Eu já pensava nela com mais atrevimento: fazendo o que estava fazendo, da maneira como o fazia, com a maior simplicidade, mas… inteiramente nua. Aliás, quando penso em sexo, gosto de imaginar as coisas acontecendo num lugar qualquer onde nos encontremos, como ali, ao ar livre e à sombra de árvores. Como ninguém pode entrar em nossa cabeça e assistir ao desenvolvimento escandaloso de nossas fantasias, já projetei obscenidades no balcão do escritório, no supermercado, no meio da rua, com a caixa da papelaria, a ruivinha da biblioteca, meninas das lojas, uma colega de seção, onde e com quem sucedia excitar-me, e isso era o mais excitante. É sempre um prazer ver as coisas assim, desenvolvendo-se à luz do dia e com a mais espantosa naturalidade, sem que ninguém se altere: todos passando e se movimentando ao redor, como se presenciassem o que fosse o gesto mais cotidiano do mundo. E é – em outras circunstâncias.
Vanessa ainda remexia a bolsa, sem muita pressa. Era uma bolsa grande, devia ter o diabo lá dentro. Enquanto isso, eu tramava possuí-la como num sonho, começando por seus pés, por descalçar-lhe os sapatos, então… Ah, a literatura, a loucura! Eu quase podia sentir minhas mãos acariciando-lhe os peitinhos, apalpando-lhe a bundinha, a bocetinha…
“Ah, está aqui”, disse ela com surpreendente calma.
(O conselho editorial suprimiu esse trecho na primeira versão. Alegavam motivos óbvios. Por isso, eu tive de convencê-los com argumentos também óbvios. Os autores que se servem cautelosamente de seios, nádegas, “calor de sua vagina”, não percebem que certas palavras são às vezes mais adequadas e até mais atraentes. Além do mais, dizem a mesma coisa. Se uso bundinha e bocetinha sem reservas, foi porque as vislumbrei com todos os pelos, curvas e reentrâncias em minha imaginação. Por que seriam menos belas que suas sucedâneas eufemísticas? Além de harmonizarem-se entre si pela similaridade e aliteração, inspiram-nos a todos, os varões, arroubos de poesia. Qualquer poeta pode entender isso. Até os de vanguarda. Por fim, eu me permiti lembrá-los, aos leitores do conselho, de que eram apenas palavras. Quem não gostasse, não leria outra vez e não tornaria àquela página. Ora, e Henry Miller, não é hoje um clássico? Sei que é patético ter de acrescentar, a esta passagem, esta nota nauseante de evidências, mas o editor ameaçou-me, e eu me corrompi.)
A conspiração dos felizes
22. Um sonho fantástico, só o que podia ser – sequência
20. O que ela não queria era sorrir para mim – anterior
Imagem: Michael Alford. Alyona de perfil.
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