Office in a Small City por Edward Hopper

O que ela não queria era sorrir para mim

Que espécie de cordeiros estariam hoje educando para que espécie de lobos?
Mesmo assim, isso renovou minhas esperanças. Também não sei em quê.
Paul Émile Chabas. Retrato de uma mulher.

Mas parece que tudo passou. Para mim, pelo menos. Uma colega que leciona no curso noturno garantiu-me que “isso está superado, o ensino evoluiu, as coisas já não são mais assim…” Mas, da maneira como ela o disse, fiquei com alguma má impressão, não sei por que motivo, como se pressentisse novas mediocridades e como a perguntar-me surdamente que espécie de cordeiros estariam hoje sendo treinados (ela diria educados) para que espécie de lobos. Mesmo assim, isso renovou minhas esperanças. Também não sei em quê.

Aproveitando o assunto da escola, recordei-lhe as mentiras que nos haviam incutido sobre o Descobrimento, aquela anedota da calmaria nas costas africanas, de como nos convenciam a idolatrar duques e generais, as mortandades sanguinolentas que faziam desses patifes empolados nossos heróis históricos, a falsa liberdade dos escravos e os ratos da República, de como nos ensinavam desde cedo a amar a bandeira, o hino, o brasão, as armas, a tralha patriótica toda, enfim, tudo o que não se pode amar de verdade e que ninguém aguenta mais. As nações também apodrecem, você sabe: há bandeiras antigas e objetos de uma heráldica já sem distinção. Ninguém sabe mais de quem eram, de que família ou reino, nem onde… Ora, ninguém aguenta mais.

Ao ouvir esses últimos desabafos, Vanessa passou a olhar-me com reservas. Claro, eu sempre estragava tudo. Não aprendia a controlar a língua. Exaltava-me facilmente em sua presença, mas o que podia fazer? Era um dia especial para mim. Ela era especial para mim. E quem não se altera de alguma forma diante de alguém que lhe seja especial? Tentei dissipar aquela sua expressão defensiva lembrando passagens cômicas de nossos antigos professores, e isso nos descontraiu um pouco. Aliás, eu mal podia acreditar em como se transformaram rapidamente as atitudes dela. Vanessa tornara-se mais fluente e até ameaçava sorrir.

“E o professor Zózimo, lembra? De Filosofia. Ficava discutindo a existência de Deus com a faxineira da escola, tentando convencê-la a todo custo. Ela não acreditava em Deus.”

Vanessa mantinha os lábios enrijecidos, sustentando um lindo sorriso preso.

“Uma vez ele caiu da escada…”

Enquanto eu lhe falava de patetadas daqueles anos de colégio, todo o seu rosto parecia contrair-se, como se fosse explodir em risos a qualquer momento. Talvez fosse a sua maneira de rir nessa idade. Achei estranho, pois até então ela não me parecia o tipo de pessoa que pudesse entusiasmar-se com tais malefícios e desventuras alheias. Muitos preferem esconder esse aspecto da própria personalidade e disfarçam seu gosto pela galhofa quando em companhia de outrem, fazendo-se passar por sóbrios e até generosos. Acho que todos nós.

“A dona… A dona… Ah, esqueci o nome dela. Aquela que usava uma touca no inverno e parecia uma jaburana. Quando perguntavam o que era uma jaburana, alguém sempre respondia: não sei, mas ela parece uma.”

As anedotas do folclore docente surtiram um extraordinário efeito. Eu sempre ando com algumas no bolso, na ponta da língua. Ela se sentia bem mais à vontade e já não se mostrava constrangida por ter me mandado à Academia. Eu também me sentia melhor.

“Lembro que uma vez pensaram que você fosse parente do professor Politto”, disse ela com uma ponta de escárnio.

“Pois é…”

Sobre o professor Politto, foi o seguinte: por causa da similaridade de nossos sobrenomes, algum gaiato espalhou, de gozação, que eu era seu filho bastardo. Ele ficou sabendo e, desde então, passou a observar-me o tempo todo, olhando-me de soslaio pelos corredores. Ele também era feio e se parecia comigo. É claro que aquilo tudo não tinha o menor fundamento, mas para quem tem dúvidas sobre o próprio passado, qualquer suspeita avulsa não deixa de ser preocupante, enquanto não se constata, por fim, mais um alarme falso. No dia em que eu o encontrei por acaso nos mijadouros masculinos, uns colegas sem escrúpulos apontaram: “Olha ele aí!” – isso da maneira mais escandalosa e visível. Tentando remediar um pouco aquele constrangimento, mostrei-me simpático e perguntei-lhe, como bom idiota que sempre fui: “O senhor tem parentes no centro do estado?”. Mas foi pior, e isso nos desconcertou ainda mais. Ele enrubesceu enquanto subia o zíper da calça, guardando às pressas a provável arma do crime, e disse: “Não, receio que não. Com licença.”. Seu linguajar esmerado não disfarçava a irritação que sentia à minha proximidade. O professor Politto era um homem culto, de boa família e, à parte o boato que desgraçadamente o envergonhava, era óbvio que ele não queria ser parente de um sujeito ignorante e pobre como eu. Tornei a pensar na teoria de Copérnico. Oh, a ciência… Oh, a literatura…

“Cada carão a gente passa nesta vida, não é?”, desabafei por fim com Vanessa.

Então, finalmente ela sorriu. De uma maneira contínua, como se risse em silêncio. E esse foi para mim um momento de glória. Era a primeira vez que admirava seu sorriso desde que eu havia chegado, meia hora atrás, e desde a última vez que a vira, há dez anos: que dentes perfeitos, que lindo rosto aberto de primavera! Os olhos estreitavam-se, cheios de vida, cintilantes, o queixo pequeno realçando seu próprio triângulo… Claro, eu estava deslumbrado. Poderia escrever dez páginas sobre seu sorriso, sobre Vanessa sorrindo em minha tarde. Acho que nunca tinha estado tão próximo dela, nunca antes pudera vê-la de tão perto. E conquistar seu sorriso foi mais do que eu poderia esperar, mesmo servindo-me da comicidade que inspiravam nossos antigos professores. Mas por que ela relutava tanto em ser natural? Por que evitar um sorriso assim tão belo? Conforme eu lhe contava mais casos, percebi estranhamente que as variações de seu rosto não coincidiam com o ritmo de minhas palavras: era como se ela estivesse pensando em outra coisa e fingindo dar-me atenção. Seu humor havia se manifestado logo após o incidente com o professor Politto, que ela mesma recordara, e isso parecia esclarecer as coisas. Enquanto eu tentava apenas descontraí-la – ou reconquistá-la de certa maneira, ainda que com remotas e obscuras intenções –, ela relembrava meus antigos vexames em segredo, zombando de minha figura no passado. Sim. Era isso, dolorosamente. E não que estivesse evitando sorrir. O que ela não queria era sorrir para mim.

“… mas quando a diretora ficou sabendo…”, dizia eu já sem graça. “Então… No dia seguinte…”

Dessa vez, fui eu que enrubesci. Seu lindo sorriso me feria. Magoado de repente, fui perdendo a vontade de falar, a vontade de qualquer coisa. Meu passado esmagava-me mais uma vez. Eu sabia que todos os incidentes casuais envolvendo outros colegas e professores, somados, não lograriam competir com a rotina agourenta de frustrações e vexames que fora a minha adolescência inteira. Tentei disfarçar, mas engoli em seco, justo quando ela tornava a olhar para mim, e a esse encontro de olhos quase não pude conter as lágrimas. Imaginei que se me pusesse a chorar naquele momento, enquanto ela, por sua vez, não conseguia controlar o riso, estaria eu próprio consolidando a minha desgraça. E esse teria sido mais um daqueles episódios inesquecíveis, que eu certamente amargaria para o resto da vida.

A conspiração dos felizes

21. Mulheres distraídas, visões proibidas – sequência

 19. O pequeno redator – anterior

Guia de leitura

Imagem: Paul Émile Chabas.  Retrato de uma mulher.

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