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O pequeno redator
Minha nota zero quase comprometeu todo o bimestre.
Apesar de tudo, eu esperava ser reconhecido pelas dissertações, talvez porque imaginasse ser capaz de bons resultados, no que eu acreditava então, já que nos esportes e em boa parte das outras matérias meu desempenho declinava à proximidade do absolutamente desprezível. Eu podia concentrar-me nas dissertações, havia o que me atraísse nelas. Chegava a redigi-las em casa, por minha própria conta, considerando a probabilidade de alguns temas para muito breve. Ai de mim: nenhum dos temas que eu vaticinava vinha a lume. As crescentes estatísticas de miséria e violência, que eu supunha fossem uma questão importante, nunca foram abordadas. A indiferença de quase toda a minha geração ante graves situações de desigualdade social também foi ignorada. Bem, eu ainda podia jurar que o governador em exercício, cujos vergonhosos esquemas de corrupção vinham sendo revelados dia após dia e drasticamente, não sairia ileso de nossas críticas. E saiu.
Por conta disso, não podia evitar algumas digressões quando da redação em classe. Transcrevo, conforme me permite a memória, trechos de textos que eu realizava sem remorsos nem culpas de consciência.
“Eu, que, portanto, nesse ínterim, por força do acaso, li num periódico, emprestado, sobre a ocupação militar na América Central, notei, também, que mesmo os países ditos cristãos têm, no entanto, colônias de escravos, ou semiescravos, inclusive, em diversos locais, normalmente, e até na Ásia. A Ásia, aliás, é um continente muito povoado, de temperatura tépida, onde, inclusive, se encontram pequenos ursos em extinção. Esses ursinhos, hoje em dia…”
E assim em diante. Pontuação excessiva, digressões abrindo círculos infinitos, quem sabe sem volta. Eu não sabia com certeza se a temperatura na Ásia era tépida, como não fosse a Ásia de um território imenso e detentora de todas as temperaturas possíveis, mas como havia aprendido essa palavra recentemente (tépida!), precisava mostrá-la a todos. Quando me infligiram o tal dia na fazenda, veja-se que ocorreu algo similar.
“Fomos recebidos por dois cachorros muito ferozes (Canis familiaris), que, por sorte, o empregado soube controlar a tempo. Lá, vimos vacas (Bos taurus), cavalos (Equus caballus), porcos (Sus domesticus) e muitas, mas muitas galinhas (Gallus gallus). O pasto era muito verde, pois esse tipo de vegetal realiza fotossíntese. A fauna era tão rica que, no brejo, junto ao rio, chegamos a encontrar um caranguejo (ou câncer) e tivemos um dia divertidíssimo.”
Tudo mentira. Eu não tinha ido a fazenda alguma, claro. E meus conhecimentos de biologia aparentemente não bastavam para impressionar os professores – ao contrário, isso parecia irritá-los ainda mais. Toda a minha cultura científica, eu a aplicava às outras matérias, sempre que possível. Lembro-me perfeitamente de como fui chamado perante os colegas, do professor calvo que leu à turma, com eloquência e para minha desgraça, o texto resultante do tema proposto, algo sobre a necessidade de se praticarem esportes, coisa que nunca entendi – o porquê de tal necessidade, digo. No entanto, era preciso redigir o que fosse. Eis o que escrevi.
“Eu vi a velha em frente à academia de esportes. Vi os rapazes da musculação e da natação ainda sobre o mundo. Vi as meninas da dança e da ginástica sorrindo como se pudessem salvar-se. Vi quando todos entravam e saíam, enquanto esperava, sem pressa, a velha encarquilhada e arcada pela Terra. Via-se ali a manhã dos jovens, a beleza e a saúde. Mas via-se também a velha. Eu vi a velha.”
Eu acabara de conhecer a palavra encarquilhada, não podia deixar de empregá-la orgulhosamente. Admito que o texto não era grande coisa, admito também que havia denegrido, esculhambado com toda a proposta, mas há que se reconhecer: era uma tentativa de se alcançar algo diferente e que se destacasse da nauseante repetição que logo se viu por toda a sala, quando uns e outros tiveram de ler suas produções, fartas de palavras previsíveis e infinitas banalidades. O professor calvo leu com ênfase esse trecho da velha, e os risinhos se multiplicaram, abafados, maliciosos, prazerosos. Minha nota zero quase comprometeu todo o bimestre.
Eu me lembrava de ter visto, em minha infância, nas vitrines das lojas, entre os tantos brinquedos que não podíamos comprar, caixas vistosas trazendo conjuntos de peças e instrumentos adaptados, identificadas por palavras compostas em letras atraentes e estilizadas, que se chamavam “O pequeno químico”, “O pequeno médico”, “O pequeno cientista”, o pequeno isto, o pequeno aquilo – e assim por diante. Nessa fase de minha adolescência, passei a imaginar um desses estojos, de mais de meio metro, com um daqueles meninos de óculos, sorrindo, com o nome: “O pequeno redator”. Mas, em vez de pequenos microscópios, ímãs, fios, tubos de ensaio, plaquinhas, estetoscópios e material para experiências domésticas… o que traria dentro? Papéis em branco? Lápis, borracha? Onde é que eu estava com a cabeça ao imaginar uma coisa daquelas? O que eu trazia dentro?
De qualquer forma, tive de jurar a mim mesmo que só escreveria o que eles quisessem, sem inventar muito. Nem sempre consegui. Mas foi o bastante para ser aprovado, ano após ano, com um pouco de sorte e ajuda de uns raros professores piedosos, isso até finalmente ver-me livre da escola.
A conspiração dos felizes
20. O que ela não queria era sorrir para mim – sequência
18. Mais um pouco da maldita conversa bem-educada – anterior
Imagem: Paul Gauguin. Paisagem bretã com porcos. 1888.
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