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Primeiras falas de um reencontro maldito
Que havia superado minhas estranhezas dos tempos de colégio, que a perdoava por tudo.
Ela estava ali. Junto a mim e tão próxima, na plenitude de sua beleza, após dez anos passados. Eu mal podia acreditar.
“Puxa…”
De início, não sabia o que lhe dizer. Mas certamente encontraria algo. Eu não era mais aquele adolescente idiota e já não precisava de coragem para conversar com quem fosse: um colega, o patrão ou o bispo metropolitano. Pelo contrário, vinha me tornando cada vez mais descarado e direto. Mas gostaria de confessar-lhe que, naquele momento, o que eu sentia era uma grata emoção por reencontrá-la, que ela fora parte de minha adolescência e que eu estava feliz por sabê-la bem. Que podia vê-la com outros olhos, sem a miopia do passado, nem os de um tolo iludido nem os de um sátiro sem escrúpulos, mas com variações de amor fraternal, apesar de tudo. Que havia crescido e superado minhas estranhezas dos tempos de colégio, que a perdoava por tudo quanto eu havia sofrido por sua causa, e não havia em mim nenhum rancor ou mágoa ou ressentimento. Também gostaria de chamá-la carinhosamente Vanessa Maria. (Ah, não sei por que motivo de sonho o súbito, estranho desejo de chamá-la assim!) Poderia ter-lhe dito isso tudo e continuar falando, poderia ter passado a tarde toda tentando definir meus sentimentos de primavera e admirando-a com meus olhos de hoje. Sim, tudo isso. Mas ela aparentava tanta indiferença, que eu disse apenas:
“Lindo dia…”
Seus olhos castanhos pareciam refletir a claridade da estação. Ela concordou, um breve murmúrio, não sentia talvez nenhum entusiasmo por esse dia especial e, para mim, tão contagiante. Mas, de alguma forma, parecia ansiosa. Por quê?
“Então, o que anda fazendo?”, perguntei a ela outra vez, estupidamente.
“Estudando”, disse ela também outra vez, sem ênfase.
De súbito, senti que não havia mais nada a dizer – eu, que, um minuto atrás, quase me punha em delírio imaginando o falar-lhe. E que o melhor seria levantar-me dali e dar-lhe adeus pela última vez, definitivamente. Sim, era isso. Mandá-la aos diabos. E continuar em meu mundo, em meus dias, longe de sua presença, de qualquer memória que ela fizesse restaurar, longe de tudo aquilo para sempre. Mas foi a voz dela o que interrompeu aquela minha eternidade.
“E você?”
Eu? E eu? Era surpreendente que ela me perguntasse isso. Em geral, ninguém pergunta sobre mim.
“Trabalhando”, disse. “Parei de estudar. O que eu ganho não dá pra pagar o curso superior, por isso…”
Era verdade. Mas principalmente era porque eu não pretendia cursar coisa alguma, de fato, não havia nada que me interessasse muito. Nem era preciso que eu lhe dissesse algo, e logo em seguida tive vergonha, acabei arrependido por ter falado em dinheiro. Vanessa vivia outro mundo, no qual o dinheiro fluía sem problemas: ela não conhecia tais impedimentos.
“Mas também estou me dedicando a outra coisa agora, escrever”, confessei. “A literatura sempre me atraiu, sabe? Mas nunca tive dinheiro pra ir a um analista…”
Outra vez o dinheiro. Jurei que poria travas na língua a partir de então.
“Agora estou tentando terminar outro livro.”
Falei assim, de propósito, para que ela perguntasse:
“Ah, é? Quer dizer que você já escreveu um?”
Com isso, agitei-me na cadeira, excitado pela vaidade. Falei-lhe sobre A canção de pedra, meu único livro de contos, de seu exagerado lirismo, contei-lhe que havia engendrado tudo aquilo quando ainda era puro e lia demais uns autores cretinos só porque eles eram Prêmio Nobel. Que, infelizmente, o livro já estava publicado, era tarde demais. Mas que o trabalhador Jegue ainda me comovia por ser tão verdadeiro, e talvez não houvesse outro personagem com o qual eu me identificasse tanto até então, nem mesmo o anti-herói urbano, como o incompreendido visionário Gino Grandecoco…
“… principalmente por sua obstinação em superar-se, e tudo isso apesar da indiferença coletiva.”
Ah! Havia também o diálogo dos lagartos, quase me esquecia.
“Sabe, tem também um diálogo entre dois lagartos…”
Nem sei o que pode ter passado pela cabeça, dela imaginando os desencontrados trechos que eu lhe ia descrevendo. Mais estranho era que nem uma única vez ela perguntasse sobre os nomes extravagantes, não quisesse saber quem era o tal Gino Grandecoco, do que tratava afinal um texto sobre lagartos e o que diabo se passava entre eles, o que era aquilo tudo, enfim, uma falta de curiosidade… (Obviamente não mencionei o fracasso comercial: o velho editor não queria mais falar comigo e não me atendia nem ao telefone.) De qualquer forma, Vanessa deve ter se espantado com meu súbito entusiasmo e por haver-lhe despejado tudo aquilo assim, sem pró nem dó, sem mais nem menos, como se ela conhecesse de antemão algum de meus contos ou o agourento Gino.
“Daí, pensei em escrever um romance”, emendei.
“Não diga. Sobre o quê?”
Sobre o quê? Ora, que boa pergunta. Eu não havia pensado nisso ainda. (Oh, a literatura…) Quando um escritor decide escrever um romance, o que ele quer é escrever um romance, não importa qual será o tema.
“Sobre o quê? Bom… Seria assim uma espécie de diário, ahn… De um sujeito que vê o mundo e… Ahn… Um jovem desencantado com a vida, seus conflitos… E não só isso, claro…” Eu mesmo quase fiz uma careta. Eram os temas mais chatos do mundo para um romance. “E se chamaria, por exemplo, As aventuras de fulano ou… Memórias de perengano. Mas acontece que isso vem sendo feito há uns quinhentos anos e já se tornou insuportável em literatura, não é?”, retifiquei. “Ninguém aguenta mais.”
“Sei”, fez ela como se preferisse encerrar o assunto.
“Também poderia ser algo do tipo: Além de… Além do… Além da…” Nada me ocorreu. “Enfim, além de alguma coisa. Mas todo livro com esses títulos além acabam sendo rasteiros e dificilmente vão além de coisa alguma. Não é?”
“Sei.”
“Aliás, o volume não é importante, nunca foi, exceto para os leigos. Por que ficar insistindo nesses calhamaços de quatrocentas ou quinhentas páginas? Um conto de Kafka ou de Poe é mais inquietante e arrebatador do que toneladas desses romances, os mais vendidos, por exemplo. Muito papel escrito, poucas ideias. Ninguém aguenta mais.”
Ela então me perguntou se eu já tinha lido isto e aquilo, romances épicos sobre os ciclos da borracha, da cana-de-açúcar, do café, da urtiga… Não tinha entendido nada, coitada.
A conspiração dos felizes
16. “De quem é isso?” – sequência
14. Eu e ela em sintonia improvável – anterior
Imagem: David Farrant. Garota esperando à mesa (detalhe).
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