Office in a Small City por Edward Hopper

Distrações e desastres (mais ou menos) dramáticos

O suicídio não é a solução, pensava eu erroneamente.
Mas esse equívoco já tinha o efeito de uma sentença infernal.

Georges Braque. Composição frutas, pratos e cartas. 1913Minha coragem voltou. Agora eu tinha todo o tempo do mundo, e poderia redigir duas mil vezes a mesma mensagem até chegar à forma final, corrigindo-me e aperfeiçoando-me continuamente. E esta era uma frase que eu gostava muito de imaginar: “Temos todo o tempo do mundo, Vanessa.”. Era irresistível o clima de agradável clandestinidade que eu experimentava em meu quarto, em meio a esses tais papéis. Foi assim, lembro-me com delícia, que comecei a escrever.

Levei quase um mês nessa carta. Registrei ali tudo o que pensava em lhe dizer, com as melhores palavras possíveis – as mesmas que hoje soam precárias e mesmo enfadonhas em minha memória. No dia em que a dei por terminada, uma sexta-feira, estava tão exultante que fechei às pressas diversos envelopes e saí tropeçando nos móveis, até a rua. Corri ao posto dos correios antes que se encerrasse o expediente e por sorte consegui chegar entre os últimos cinco minutos. Voltei andando sem pressa, maquinando o desenrolar-se daquilo tudo, apreensivo enquanto imaginava as expressões dela ao correr cada trecho com aqueles seus olhinhos castanhos, sim, palavra por palavra, linha por linha, parágrafo por parágrafo – eu sabia toda a carta de cor!

“… e quando então compreenderes o íntimo mais puro de minhas intenções…”

Está feito, eu dizia. Feito. Amanhã mesmo, pela manhã, a carta cairá no harmonioso jardim da casa dela, entrará pela porta da frente e subirá ao seu quarto, com minha caligrafia quase artesanal em seu bojo, violando seu mundo cristalino pela sutileza de minha intromissão.

Eu tinha todo um final de semana para tomar fôlego antes de encontrá-la na segunda-feira. Voltei ao meu quarto, tomado de certo alívio, mas quando me sentei à escrivaninha, quase me atirei de cabeça na lixeira: a carta para Vanessa estava ali. Ali, à minha frente! Meus cabelos ficaram todos de pé. Pus-me a remexer a infinita papelada, com espantosa agilidade, e descobri que havia trocado os envelopes, na confusão da pressa. Tudo se esclarecia. O envelope que encontrei sob uns rascunhos era endereçado a uma rede de televisão. O que seguia em seu interior era uma carta parabenizando-os por ter-se completado mais um ano sem que exibissem um bom filme. Na verdade, tratava-se de um dos meus desabafos mais ácidos, que redigi, inclusive, de mau humor. Eu havia estendido meus insultos ao departamento de programação, ao presidente da rede e aos funcionários, por não se rebelarem. Não me furtei aos palavrões, como substantivos ou adaptados como adjetivos, constituindo esse texto um de meus momentos mais exaltados e grosseiros no uso da palavra escrita. E aquilo tudo iria parar nas mãos dela! E o correio já estava fechado! E eu não podia fazer mais nada!

“Não! Não! Nãããão!”

Não fiz mais nada. Passei quase todo o fim de semana em meu quarto, andando em círculos, arrancando os cabelos aos poucos ou tentando suicidar-me à custa de forçar a máxima abertura das mandíbulas com as duas mãos. O suicídio não é a solução, pensava eu erroneamente. Mas esse equívoco fora o bastante para levar-me ao desespero, tendo o efeito de uma sentença infernal. Por menos do que isso, eu já havia dado cabeçadas na parede, significativas e consistentes. Tanto que não resisti e confessei-me sumariamente a um primo que estivera em casa no domingo.

Esse meu primo, muito inteligente e prático, aconselhou-me: “Manda ela ir chupar um prego, que é o que ela precisa.”.

Mas eu não conseguia pensar assim. E continuei rodando em meu quarto, efetuando contas de calendário: quantos meses para o fim do ano, quantos dias letivos, quanto faltava ainda para que eu não a visse nunca mais – ah, nunca mais! –, quando teria fim esse meu pesadelo platônico…

Eu queria que o universo todo explodisse. Mas às vezes me acalmava um pouco. Fechava os olhos, franzindo fortemente a testa, entre nuvens de arabescos e sonolentos sepulcros.

Envolvendo-me em tais confusões e circunstâncias embaraçosas foi que descobri o potencial de ridículo em cada ser humano, talvez compensando um pouco as minhas aflições passadas e conflitos que pareciam insolúveis. Sabendo que não é possível voltar ao passado, o registro ganha admirável importância: trata-se um recurso disponível para imaginar o que poderia ter sido. Meus tormentos eram uma constante. As condições, nem é preciso que se repita, nada encorajadoras. Sentia que uma crise mais, um pesadelo mais, poderiam arruinar-me, prostrar-me para sempre, como quando se queima um filme ou se trinca um vidro, algo que não se pode regenerar. Naquele tempo, zombaram de minhas intenções. Riram-se de meus modestos feitos e de meus pequenos grandes sonhos. Mais tarde, ficou difícil disseminá-los outra vez entre as pessoas. No entanto, ocorria-me obscuramente não desistir. Não me render. Foi assim, vale a pena repetir, que comecei a escrever.

A conspiração dos felizes

14. Eu e ela em sintonia improvável – sequência

   12. Dicionário negro – anterior

Guia de leitura

Imagem: Georges Braque.  Composição: frutas, pratos e cartas (detalhe inferior). 1913.

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