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Dicionário negro
E o combate intelectual é tão devastador quanto a batalha dos homens.
Eu sabia que boa parte de meus colegas tinha um quarto só deles, além de um quarto de estudos. De qualquer forma, mesmo em um ambiente estreito, embora acolhedor, eu acreditava que as palavras, as ideias e o texto ao fim de tudo poderiam redimir-me das condições em que me debatia. A diferença era que eu buscava um sentido maior para a minha vida. Ou apenas um sentido, vá lá, o que já seria muito. Queria ser como Kant, tão intuitivo quanto racional. E tanto quanto pregavam ele e Vico, eu tinha certeza de que a natureza já me havia libertado da ignorância. O resto cabia a mim. E tudo me fazia crer que estava pronto, que já podia sentir, atravessado por um arrepio incômodo, que o combate intelectual era tão devastador quanto a batalha dos homens.
As cartas tornavam-me alguém. Como cidadão, eu me sentia útil e participante, além de com isso iludir um pouco meus dias pequenos e sem perspectiva. E escrevia ao prefeito, ao governador, aos ministros, ao presidente da República, à ONU, ao papa, ao diabo! Algumas dessas cartas continham ideias muito eficazes para o controle da natalidade, o pagamento da dívida externa nacional e a melhoria das condições de vida, sobretudo na nossa região Nordeste. Mas creio que nada disso interessou às autoridades. Dedicava linhas mais ásperas aos articulistas reacionários e aos autores de telenovelas, por incentivarem a vulgaridade cotidiana. Aos dezesseis anos, eu não entendia que tudo isso era intencional, pensava apenas em contribuir para o desenvolvimento da cultura e da arte em nosso país, imagine-se! Aos poucos, ia me tornando amargo, implacável, não hesitando em bombardear com críticas impiedosas o que me parecesse desonesto ou demasiado medíocre. Foi assim que comecei a escrever.
Na verdade, eu escrevia muito, sobre muitas coisas. Assim como na Idade Média as mentes simplistas e ainda confusas isolavam palavras amplas como terra, fogo, água e ar, considerando-as erroneamente como elementos, eu escrevia ao mesmo tempo um opúsculo sobre os pintores malditos, uma aventura detetivesca, um estudo (ilustrado) sobre tartarugas marinhas, uma coletânea de anedotas e a vida de Jesus. Também eu identifico minhas fases medievais, quando a confusão e a maravilha traziam-me símbolos os mais próximos, destoantes entre si e cada um, em si mesmo, tão avesso ao próprio completamento e à unidade. Dentre tantos desses projetos, não encomendados por ninguém, claro, o que mais me entusiasmava era a confecção de um léxico com novas acepções para velhos vocábulos. Como exemplo, um dicionário convencional atribui à palavra príncipe as seguintes significações.
Príncipe. 1. Filho primogênito do rei. 2. Filho ou membro de família real. 3. Título de nobreza. 4. O primeiro na hierarquia de um principado constituído… – e coisa e tal.
Porém, o meu traria definições mais completas.
Príncipe. 1. Rapaz nascido em família abastada, dita nobre, que se aproveita dos tributos pagos pelos camponeses para levar uma vida confortável.
Admito que poderia ter usado impostos em lugar de tributos, classes mais pobres em vez de camponeses, mas meu léxico encontrava-se ainda em curso, não havia sido revisto, carecia de algum aperfeiçoamento e talvez de mais fontes de pesquisa. Eu o chamava provisoriamente Dicionário negro, e ele já contava com alguns verbetes completos, o que muito me animava.
Com tudo isso, minha escrivaninha inclinada de Pisa vivia atulhada de rascunhos e cartas por enviar. E foi então, no meio dessa desordem de papéis e textos pela metade, que me surgiu a ideia principal, simples, poderosa, fascinante: escrever a Vanessa!
A conspiração dos felizes
13. Distrações e desastres (mais ou menos) dramáticos – sequência
11. Melhor esquecer – mas não – anterior
Imagem: François Gérard. Retrato do príncipe Viktor Kochubey. 1809.
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