Office in a Small City por Edward Hopper

Melhor esquecer – mas não

Não foi ainda minha última tentativa de alguma tolice.
Por essa época, eu me havia iniciado em escrever cartas.
.Aldo Balding. Espresso.

E Vanessa? O que pensaria de mim? Talvez isso a despertasse, talvez ela pudesse compreender os meus sentimentos. E isso instigaria suas divagações, aumentando assim minhas remotas possibilidades.

Talvez não. Talvez ela passasse, então, a humilhar-me com mais frequência, tendo-me revelado, pois é comum que se tente humilhar uma pessoa que nos ama declaradamente. E ela já me havia hostilizado em mais de uma ocasião, como bem me lembrava. (Não vou contar os casos. Não.) Talvez achasse engraçado, apenas, e me agradecesse o presente. Com pessoas desse tipo, reações apáticas e vazias de paixão são quase o previsível.

Assim passei infinitos dias de tensão antecipada, porém cheio de coragem. A data vinha chegando. Na véspera, comecei a tremer. É normal, eu pensava. O dia chegou, e minha coragem se foi. Não cheguei sequer a aproximar-me de Vanessa. Tive medo. Não, nem falei com ela. Não entreguei presente nenhum. Enfim: não fiz nada.

Nos dias que se seguiram, passei horas em meu quarto, olhando o embrulho de amor e pensando bem em tudo aquilo. A pulseira, que eu vinha escondendo, com vergonha de minha mãe, atirei ao rio sem que ninguém soubesse. Não me ocorreu outro fim para ela. Se eu a oferecesse a alguém, isso demandaria justificativas, explicações e mentiras bem mais acrobáticas do que aquelas que eu costumava criar. Melhor esquecer. Lanço-a da ponte a caminho da escola, disfarçadamente, sobre as águas sujas do canal. Que as águas a arrastem para longe, sim, para bem longe de mim. Oh, a literatura…

Ao contrário do que se poderia lógica e filosoficamente supor, não foi ainda minha última tentativa de alguma tolice. Por essa época, eu me havia iniciado em escrever cartas. Cartas para a televisão, para revistas e jornais, ministérios, embaixadas e outros órgãos detestáveis. Enviando sugestões, denunciando falhas, fraudes e outras mentiras a céu aberto, apoiando certas iniciativas, deplorando outras, isso em diante. Eu me fazia cumpridor de meus direitos, era assim que tola e solenemente me definia. Foi assim que comecei a escrever.

Eu tinha em casa um caixote só meu, que servia de lixeira. Não era preciso mais do que aquilo, nem eu seria merecedor de outros luxos além dos que atendem aos estudantes pobres. Escrevia a um canto da cozinha, por causa da melhor lâmpada. Depois, guardava tudo em um pequeno armário, de altura pouco maior que a de um criado-mudo, portinhola difícil e chave girando em falso, ganhado não me lembro de que parentes, à força promovido a estante e assim disposto ali, ao lado de minha cama. Eu tentava evitar a velha escrivaninha, que era irremediavelmente inclinada, temia que ela pudesse desabar de vez, para o lado que mais parecia atraí-la. Apesar de meus esforços costumeiros, tentando restaurá-la a seu prumo, nada a impedia de escolher tombar para a esquerda, o que me fazia pensar nela, secreta e lamentavelmente, como a escrivaninha inclinada de Pisa – sim, pois preferia abrir mão de tal analogia a confessar a alguém essa sua misteriosa tendência.

A conspiração dos felizes – Guia de leitura

12. Dicionário negro – sequência

 10. A fortaleza obscura de minha solidão – anterior

Imagem: Aldo Balding.  Espresso.

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Comentários

Uma resposta para “Melhor esquecer – mas não”

  1. Avatar de Thiago Wesker

    Cada um melhor que o outro, é como saborear meus pratos preferidos em uma só refeição.

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