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Piano para um menino secreto
Não como nos livros.
Perdido em minha conturbada solidão, eu só fazia assimilar a realidade dessas relações. Imaginava que um dia eles haveriam de se casar, teriam filhos (sempre tão belos, sempre tão bons…), e estes talvez estudassem em outras salas de aula como a nossa, sentados todos juntos, protegendo-se sempre, enquanto, agora mesmo, algum outro como eu devia estar nascendo em um bairro qualquer, de ruas de terra.
Quando eu os via na saída, despedindo-se, combinando encontros à tarde na casa de não sei quem, partidas de baralho e pingue-pongue, minhas esperanças tornavam-se ainda mais ridículas. Aliás, eu não acreditava em contos de fadas, nem gostaria que fossem verdade, não como acontecem nos livros. Eles tinham carros, motos (ele deve ter muitas calças, eu pensava), aparelhos acústicos, telefones sem fio e tantas outras porcarias de coisas que eu não tinha, nem de longe, em meu mundo, que eu nem conhecia. Diante disso, que chances eu tinha? Uma chance é sempre uma chance, eu me repetia, filosófico, como se me fiasse em provérbios ou acabasse de inventar um. Mas, ai de mim: quando menino, eu era uma daquelas crianças de pé no chão, tão distante de qualquer oportunidade prometida pela TV. E o que eu tinha era uma bicicleta velha, que não se entendia comigo, e muitas vezes me deixava a empurrá-la por culpa de uma corrente deslocada ou um parafuso perdido, sem chances de resgate.
Sim, eu que o diga sobre chances. Quando ainda não percebia tais diferenças, ao fim das aulas, costumava desviar-me do caminho de volta, sem que ninguém soubesse. Passava por uma casa cuja cerca de grades isolava um jardim bem arranjado e de onde se via a ampla janela da sala, vidros revelando cortinas opacas que não permitiam à visão ir além de sua cor amena, discreta e hostil. Desnecessário o aviso – NÃO ULTRAPASSE – próximo à gárgula do portão: toda a fachada repetia, por si só, uma mensagem semelhante, no silêncio de qualquer idioma. Eu deitava cuidadosamente a bicicleta sobre a calçada de pedras, sentava-me no degrau do portão, fingia estar estudando, e deixava-me ficar ali para ouvir o que de mais belo e mágico conhecera até então em minha curta vida: o piano. Por vezes, tão suave que poderia acompanhá-la o fim da tarde, outras vezes deslizando velozmente sobre minúsculos diamantes, a música fluía daquele cubo envidraçado, sem que o pianista, quem fosse (como na fábula oriental o avarento franqueava ao mendigo a fumaça de seu assado e lhe acrescentava como donativo o tilintar de suas moedas), imaginasse ofertar ao menino encantado o que a outros cobrava em dinheiro e custava sua casa com jardins, sobre sólidos pilares de segurança. Eu ficava ali, ouvindo o piano, clandestinamente. O resultado dessa beleza, após séculos de sonho e tragédia entre as biografias, modificava minha tarde e minha vida, antes que eu desmistificasse também, com a curiosidade dos adultos, aquelas fascinantes composições, maculando-as por conhecer-lhes o nome e o número, o autor e sua escola. Mas eu ficava ali, como, na lenda, Jacob Grimm ocultava-se sob a janela das velhas contadoras de histórias da Floresta Negra a fim de registrar seus relatos, eu ficava ali, sob a gárgula e o aviso obsoleto, junto ao jardim proibido e ante os vidros que davam para outro mundo, desejando que aquelas melodias durassem sempre e fossem a minha vida. Se, de um lado, as cortinas delimitavam minha ansiosa visão, os sinos e os cristais que o piano punha ao vento lançavam-me a ultrapassar os limites das diferenças, o estigma das distâncias, o artista e o seu ouvinte secreto, sentado no degrau do abismo.
A conspiração dos felizes
10. A fortaleza obscura de minha solidão – sequência
8. O gosto diário de sua indiferença – anterior
Imagem: Aldo Balding. O guardião dos verões esquecidos (detalhe superior).
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