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Saramago – Manual de pintura e caligrafia
Único autor de língua portuguesa a ser premiado com o Nobel de literatura, filho de camponeses pobres, reconhecido tardiamente, transformou-se em um dos maiores nomes da literatura contemporânea, sendo citado por Harold Bloom como um dos melhores romancistas da atualidade. O trecho escolhido é parte de um de seus primeiros livros, publicado após a Revolução dos Cravos, e um de meus prediletos entre o conjunto de sua obra, tanto pela excelência da escrita quanto pela visão humana da realidade de seu personagem central, um artista fracassado que se esforça para ganhar a vida pintando retratos por encomenda, revendo seus valores e sua vida sentimental. Certa noite, reunido com amigos em seu pequeno apartamento para comemorar uma venda, vê que um deles descobre casualmente, num cômodo ao lado, uma tela coberta com tinta preta, que era antes uma pintura que ele não conseguira realizar. António, esse amigo, volta à sala, já sob efeito do álcool, fazendo brincadeiras e depreciando seu trabalho.
António, que era arquiteto, me perguntava: “Tu agora passaste a abstrato? Tanto que pintas numa tinta só? Então, os retratinhos?” Posso enfim dizer que saltei de meu lugar num rompante e no caminho para chegar ao António pude dominar-me para apenas lhe arrancar (sim, com violência) o quadro que ele já segurava com ambas as mãos, e mais me dominei para não lhe dar um soco, por causa daquele quadro preto que eu não poderia explicar nunca. E também porque António infringira deliberadamente as regras do grupo, ao classificar de “retratinhos” as pinturas a que só eu tinha o direito. Enquanto eu levava outra vez o quadro para o quarto das arrumações, ouvia nitidamente, como se me acompanhassem rente aos ouvidos, as vozes do António repisando: “Quando é que ele se resolve a pintar?” e as dos outros que o mandavam calar com o ar aflito. António esquecera que não se fala de “retratinhos” a quem só os faz.
Eram três e meia da manhã quando, longe de casa, fui subindo na direção do mirante. Lá chegando, desci até a grade e fiquei a olhar o rio, conseguindo não pensar em nada, expulsando o mínimo pensamento, esvaziando tudo de tudo, para que nem sequer as luzes dos barcos tivessem qualquer significação, a não ser a de brilharem sem motivo. Não lhes permitiria mais. Enfim me sentei num dos bancos e, sem saber como e quando tinha começado, dei por mim que chorava.
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José Saramago, Manual de pintura e caligrafia.
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Uma resposta para “Saramago – Manual de pintura e caligrafia”
Gostei muito de encontrar aqui José Saramago. Um escritor que muito admiro. Há uma história interessante sobre a a aceitação dele aqui em Edmonton, na comunidade portuguesa. Há uns anos ele visitou esta cidade. Apesar de não ter sido convidado a conhecer o salão cultural português, ele fez-se convidado. Ficou desiludido, pois claro, eu quando visitei a comunidade pela primeira vez, também fiquei. Triste que a cultura portuguesa aqui se resuma a religião, jantares, algum folclore e pouco mais. Literatura, o que será isso? Livros? Não há tempo para ler. Tempo é dinheiro. E assim, pouco valor se vai dando à língua portuguesa.
Há dois anos veio a cantora Ana Malhoa. Pessoalmente não tenho nada contra ela. Não sou sua fã, mas também não me incomoda. O que me entristeceu foi a enorme festa que lhe ofereceram, enquanto que a foto do nosso Nobel de Literatura de 1998 foi excluída do salão cultural português de Edmonton. “E esta, hein?”, exclamaria o nosso famoso jornalista Fernando Pessoa.
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