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O gosto diário de sua indiferença
Eu a amava.
Não fui eu a primeira nem a última vítima do senso de humor humano. Há também vítimas fatais, em diversos países. E sei que, como eu, há outros por toda parte, em todas as épocas, em maior ou menor grau, os mais fortes humilhando os mais fracos, para que o mundo continue em harmonia.
Se alguma vez o foi. Um mundo de boas relações, ao menos. Mas já isso não é muito de nossa conta, apenas sonhamos que seja. Quando se diz mundo, diz-se nossa ideia de mundo, as notícias e a história, os ambientes em que nos toleram com nossas opiniões, e as pessoas que conhecemos, infelizmente. Vanessa é alguém sobre o mundo. Por algum tempo, é preciso que se repita. O tempo de cada um é o seu próprio tempo, assim como seu próprio mundo. Todos seremos vencidos.
Certo, talvez eu devesse ser criticado por isso, por ter-me desviado tanto de Vanessa. Era só sobre ela que eu pretendia falar. Por que confundi sua lembrança com as antigas dores de minha adolescência? Se bem que ela fosse o tipo de mulher que me faria sofrer a vida inteira, se por acaso convivêssemos proximamente, como nos tempos de colégio. O gosto diário de sua indiferença, os meus ciúmes inevitáveis, os tons de suave arrogância que deixava transparecer entre sua beleza quando distraída, o som de suas palavras a um colega qualquer… Seria uma tortura tê-la sempre por perto, sabendo-a intocável e não podendo mais do que sonhá-la em situações inverossímeis, embora comuns. Eu a amava. Mas podia detestá-la quase ao mesmo tempo, com a mesma espontaneidade. Sua presença me incomodava, me perturbava, daí a confusão conflitante de meus sentimentos variegados, e essa talvez seja a mais verdadeira e pungente manifestação do amor, com matizes de ódio.
Sofria ao vê-la durante o intervalo, mãos dadas com um rapaz do último ano, cujo pai também tinha um automóvel, mas fazia questão de observá-la, ainda que isso me ferisse continuamente. E era como se acompanhasse sua história pessoal, dizendo-me: ela já namora há três semanas, há um mês, trinta e oito dias… Mais tarde, um outro a conquistou. Eu os observava de longe – de muito longe. Carinhosos e conversando baixo, ela nem parecia a mesma que explodira em risadas incontroláveis daquela vez. Esse seu namorado tinha uma moto último tipo que até os outros de sua laia invejavam. Vanessa, por sua vez, era invejada por ser a sua garota. “Ah, é você que é a namorada dele?”, entusiasmava-se alguma colega, num sorriso de surpresa, uns sempre felizes pelos outros. Eu ouvia por acaso. Pensava em suicídio.
A conspiração dos felizes
9. Piano para um menino secreto – sequência
7. De memórias ultrajantes – anterior
Imagem: Edvard Munch. Melancolia. 1894.
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