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De memórias ultrajantes
Só eu sei como me senti, só eu sei como me sinto ao relembrá-los.
Por vezes eu me calava e não reagia, aproveitando-me oportunamente para avaliar os limites da mordacidade alheia. Quem sabe sintam pena, eu filosofava. Pena de si mesmos por estarem subordinados à ditadura de tais estranhas necessidades. Quem sabe despertem para seu próprio vazio e, a partir disso… Mas não. Não havia limites, não por via da consciência ou dos sentimentos humanitários. Só o tédio os detinha, foi o que concluí. E aqueles que a tudo assistiam, surpresos com minhas atitudes (melhor dizendo, não atitudes), admiravam-se disso e, mesmo não intervindo, meneavam suavemente a cabeça, comentando, por fim: “Você não tem jeito mesmo.”.
Vale mencionar que eram todos de famílias cristãs, o que nunca pareceu incomodá-los. Mesmo acreditando-se em Deus, a natureza humana segue seu curso estagnado, como há muito é sabido. Mas eu era muito jovem, imaturo, como já disse. Faltava-me compreender as coisas, o mundo.
Ainda hoje, certos pormenores me desafiam de maneira… Ora, já basta! Não quero lembrar, não mesmo! Não quero. Mas não consigo evitar. E quero! É quase um desejo. A dor desses vexames me atrai diabolicamente. Só eu sei como me senti, só eu sei como me sinto ao relembrá-los. Mas por que esse estranho desejo? Que demônios me instigam a isso? Será que, torturando-me com as mesmas cenas, acabo aprendendo ou descobrindo alguma coisa em mim mesmo? Algo que talvez me faltasse considerar, uma revelação, um… Nem sei. Duvido. Mas quero.
Apenas um. Esse colega era um rapaz perfeitamente normal, por isso tinha também sua carência de infligir humilhações a outrem. Sentava-se ao lado de Vanessa, era de seu grupo. Ele havia saído de seu lugar sem que eu percebesse e, sorrateiramente, instalara-se na carteira vaga atrás da minha, de onde passou a aquecer-me a bunda com um isqueiro. Geralmente o efeito é um pouco retardado. Mas súbito.
“Au!”
Levantei-me de um pulo, interrompendo a aula, e todos se voltaram em minha direção. Alguns, já prevenidos, acompanharam tudo em perfeito silêncio, aguardando o desfecho da execução do plano, só então irrompendo em gargalhadas incontroláveis, como se as houvessem reprimido por dezenas de anos. Lembro-me também – ah, meus demônios, como me lembro! – que Vanessa quase perdera o fôlego, enrubescera, e aqueles seus olhos harmoniosos brilharam em lágrimas, de tanto rir. Dentre as colegas (a plateia feminina da turma), ela fora uma das que mais se divertiram com aquela bobagem sem graça nenhuma, e não porque fosse comigo, não mesmo. Apenas eu supunha que uma pessoa dotada de algum miolo e verdadeiro senso de humor não poderia achar aquilo tudo tão engraçado a ponto de chorar, algo tão pouco sutil e sem criatividade. Eu não podia entender. Era muito imaturo. Sei, já disse isso.
Ao ver que o trocista era um deles, a professora apenas chamou silêncio, ordem, e prosseguiu em sua aula pouco importante, explicando coisas ainda menos importantes de sua matéria, aliás, no que me dizia respeito, sem importância nenhuma.
“Agora, observem o gráfico. A curva ascendente demonstra que…”
Acho que nunca aprendi nada de importante na escola. Não com os professores.
Pouco depois, passando a mão pelo traseiro da calça, notei que havia um furo ali. O tecido ordinário não resistira ao fogo e desfizera-se, formando uma pequena clareira de orlas desfiadas. Ninguém sabia disso. E eu não poderia deixar que ninguém soubesse. Na primeira oportunidade, apanhei meus cadernos e retirei-me furtivamente, tendo de perder as últimas aulas, as que mais me interessavam. Não foi difícil sair entre a algazarra do intervalo de recreio sem ser notado, sobretudo porque ninguém me notava. Cheguei em casa aliviado, mas deprimido. Era a única calça que eu tinha. Minha mãe disfarçou-a com um remendo na mesma noite, para que eu não perdesse as aulas do dia seguinte.
A conspiração dos felizes
8. O gosto diário de sua indiferença – sequência
6. Todos queriam ser o Sol – anterior
Imagem: Wassily Kandinsky. Círculos pesados. 1927.
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Comentários
Uma resposta para “De memórias ultrajantes”
Ah! Essas memórias adolescentes. Como somos cruéis quando adolescentes. Grata Perce, neste domingo frio e cinzento, seu texto me fez voltar no tempo. Abraços
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