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Ribeiro – Viva o povo brasileiro
Morreu em sua casa, no Rio de Janeiro, um dos mais consagrados escritores nacionais. Um homem de vasta cultura, que não esconde seus sinais de erudição, mas que se rendeu ao desprendimento dos personagens tipicamente brasileiros, da linguagem regionalista, dos costumes do povo mais simples, que ele nos mostra ser aquele que de fato constrói um país, uma cultura, uma língua. Esse apaixonado pela língua portuguesa tem como obra maior o romance Viva o povo brasileiro, cuja narrativa se inicia no século 18, passa pela independência do Brasil, pela abolição, pela República, vivenciando o sofrimento dos povos oprimidos pelas elites em todas as épocas, inclusive citando o massacre de Canudos, chega até os anos 1970, com a classe dominante se esbaldando em corrupção e sempre impune. Uma história que seria apenas triste, não fosse amenizada por uma dosagem de ironias e de humor. Há personagens marcantes, tanto heroicos quanto mesquinhos, e o que é preciso admitir é que essa história aparentemente trágica é a história real de nosso país, filtrada pela ficção. O trecho a seguir integra um dos capítulos finais do romance, tendo como cenário o auge do regime militar, e nos conta um momento de revelação do personagem Stalin José, um idealista nos moldes da primeira metade do século 20, um sonhador que se percebe vencido pela dura realidade dominada por aqueles que ele sempre se propôs combater, em nome da liberdade e de um mundo melhor.
Um foguete chiou, subiu, explodiu em três bolinhas de fumaça por cima da torre da Matriz. Segurando o quarto copinho de cachaça, Stalin José caminhou até a esquina da Rua Direita e descortinou ao longe o desfile escolar se aproximando, uma baliza de seus doze anos à frente dos tambores, de malha branca, saiote e chapeuzinho de papel verde e amarelo. Era tarde para ir embora, tinha que ficar para ver. E por que tinha de ficar, por qual razão? Já não via razão para nada, já sentia a mente indiferente e amorfa como clara de ovo batida, já não fazia sentido nada do que uma vez fizera, tantas coisas, tantas visões, tantas palavras, provocação, agit-prop, camarada, organização de base […] a História até aqui conhecida é a história das lutas de classe, plebeu contra patrício, escravo contra senhor, proletário contra… – e Stalin José, tonto não sabia se da cabeça, se da loucura que espadanava seus miolos fofos, se da vontade de voar que lhe tomava conta dos braços, surpreendeu-se de queixo tremendo, beiços descontrolados, olhos se enevoando, no instante em que a balizazinha, com a malha mal cerzida em dois buraquinhos na cintura, passou à sua frente de rosto erguido para o sol e altivez no porte, levantando as perninhas finas e rodopiando no ar o bastão enfeitado com as armas e cores da República. Ele ia chorar, ia ter de correr para um canto como um morcego que se esconde da luz, ia ter de ficar de novo sem entender direito por que chorava sem poder mais nunca parar? Atrás da baliza, duas faixas, a carregada pelas moças pretas que nunca saberiam como eram lindas nem acreditariam se lhes dissessem […].
João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro.
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