Office in a Small City por Edward Hopper

Seria o mínimo razoável

Difícil sim, trágico até, é quando se dá o acidente da inteligência.
E se compreende mais do que o esperado.

Pierre Bonnard. Interior. 1913É. Não é. Não, não é. Sim, pois é. Seja como for, não é difícil para alguém que nasce em certo meio, ainda que desvalido e sem perspectivas, viver entre os seus, desde que tenha também um modo de pensar semelhante ao deles, compartilhe seus costumes, concorde com seus sonhos, dos mais tímidos aos mais estapafúrdios. Difícil sim, trágico até, é quando se dá o acidente da inteligência. E se compreende mais do que o esperado. Para este, a vida passa a multiplicar-se em inúmeras visões, abrindo círculos cada vez maiores e mais largos, embora confusos, até não se poder mais identificar seu centro. Difícil não é nascer entre os que formam esse meio, deixar de pertencer a eles ou tornar-se mais tarde um rebelde – inofensivo, é preciso lembrar. Difícil é estar entre eles… e calar-se. Pois, apesar de todos os decantados privilégios da pobreza, era de se estranhar que nenhum deles desejasse trocar de lugar conosco. Surpreendia-me, espantava-me de fato, que ninguém se perguntasse coisas assim. Nas salas de aula, os alunos dividiam-se mais ou menos em grupos definidos, de acordo com suas condições sociais, o que era visível. Alguns, mais perto do professor e da porta, uniam-se de maneira permanente, como se aquelas carteiras lhes pertencessem. O resto se espalhava como podia, sem dar muita atenção a isso. A verdade é que nós, os pobres, não damos mesmo muita atenção a isso. Não damos atenção a muitas coisas, aliás. E o fato era que ninguém queria trocar de lugar.

Por aí já se vê que eu não poderia, sob nenhuma hipótese, apaixonar-me por uma garota inacessível como Vanessa. Certo. Muito bem. Concordo. Sem dúvida, trata-se do mínimo razoável. Pois foi o que aconteceu: apaixonei-me por ela! Apaixonei-me quase sem querer, sem que fosse minha primeira intenção, em segredo e em meio aos repetidos dias, e ela nunca soube disso. Aliás, ninguém. A despeito de sua arrogância natural e de seu desprezo por mim, eu sentia um prazer obscuro e quase obsessivo em adorá-la furtivamente, observando-a sempre que possível, repassando cada um de seus movimentos diurnos no escuro de minhas noites, tendo apreciado todo o tempo de sua proximidade, desde o momento mágico em que ela chegava com seus cadernos até quando se retirava de meu mundo, desaparecendo no carro deslumbrante de seu pai. Eu sabia também que sua família frequentava a igreja, que os pais a levavam para jantar com os primos, que havia toda uma enfadonha rotina de costumes que era o pequeno custo de manutenção das classes mais favorecidas. Só eu não entendia que uma pessoa pudesse ser ao mesmo tempo inteligente e levar uma vida assim, dita normal.

A conspiração dos felizes

6. Todos queriam ser o Sol – sequência

4. A vida segundo um antigo espanhol – anterior

Guia de leitura

Imagem: Pierre Bonnard. Interior. 1913.

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Comentários

Uma resposta para “Seria o mínimo razoável”

  1. Avatar de Thiago Wesker

    Muito bom! Sempre por aqui… 🙂

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