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Musil – O homem sem qualidades
Um dos mais importantes escritores da literatura, geralmente comparado a Kafka e Proust, fez de seu romance magistral sua própria vida e morreu antes de terminá-lo. Trata-se de sua obra mais importante, praticamente aquela com a qual se identifica e se confunde como autor e pela qual até hoje é lembrado. É dele a frase citada por Cortázar em Último round: “Não há nenhum pensamento importante que a estupidez não saiba usar; ela é completamente dinâmica e pode usar todos os trajes da verdade. A verdade, ao contrário, só tem um traje e um caminho, e está sempre em desvantagem.”
De seu romance quase absurdo, quase filosófico, quase surreal – enquanto fortemente real –, um monumento semelhante ao que nos legou James Joyce com seu Ulisses, foi extraído este trecho em que Ulrich está à janela observando “através do filtro verde-pálido do ar do jardim”, o movimento das ruas na Viena de 1913.
[…] há dez minutos contava com o relógio os automóveis, carruagens, bondes e os rostos de transeuntes embaciados pela distância, que cobriam a retina com um rápido redemoinho; avaliava as velocidades, os ângulos, as forças vivas das massas que passavam, que atraíam o olhar com a rapidez de um raio, prendiam-no, soltavam-no e, durante um tempo para o qual não existe medida, forçavam a atenção a resistir-lhes, desprender-se, saltar para o que viesse em seguida e jogar-se atrás dele; em suma, depois de calcular mentalmente por um momento, ele meteu o relógio no bolso, rindo, e constatou que estivera fazendo uma tolice.
Se se pudessem medir esses saltos de atenção, a atividade dos músculos dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de uma rua […] poder-se-ia avaliar que gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma. […]
A atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez ao dia um peso enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é provável também que as pequenas atividades cotidianas na sua soma social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia no mundo do que as ações heroicas […] O tempo corria. Pessoas que não viviam então não hão de querer acreditar, mas já então o tempo se movia com a rapidez de um camelo de montaria; isso não é de hoje. Apenas não se sabia para onde corria. Nem se podia distinguir direito o que estava em cima ou embaixo, o que ia para diante ou para trás.
“A gente pode fazer o que quiser”, disse o homem sem qualidades para si mesmo, dando de ombros, “que isso não tem a menor importância nesse emaranhado de forças!”
Robert Musil, O homem sem qualidades
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