Office in a Small City por Edward Hopper

Era ela, ela mesma

A esquina, a avenida arborizada, mesas ao ar livre de um conhecido café.
Eu a vi como num sonho, um sonho inesperado e arrebatador.
Lee Krasner. Serralhas (detalhe superior). 1955 1

Minha vida tem poucos atrativos, quase nada acontece, e só me é permitido escrever isto, dizer o que penso e assim expressar-me, porque sou inofensivo. Um jovem solitário, pouco atraente, sem assunto, os que me conhecem às vezes deixam escapar que sou maçante e desagradável. Durante os dias úteis, trabalho como um idiota qualquer. Nos feriados, sinto-me um idiota maior. Em dias assim, entre minhas limitadas perspectivas, uma das que me agradam é caminhar pelo centro da cidade, observando o escasso movimento, as bancas de jornais, as choperias e o discreto rumor dos cafés. Evito ficar muito em meu bairro, pois já conheço por ali uns tipos com os quais não gosto de me encontrar.

Mesmo caminhando sem qualquer compromisso, não posso evitar um trejeito de nervosismo, alguma ligeira ansiedade, aparentemente sem razão, como se nenhuma calma me bastasse e nenhum domingo fosse senão outra amostra perturbadora do tempo que em breve não mais será meu. Sempre me impressionou muito que as pessoas andassem com calma, mesmo entre conhecidos e em suas próprias cidades. Também muitas vezes acreditei que a maneira de andar, assim como alguns gestos viciados ou cacoetes, fosse a sugestão de que a natureza orgânica começasse por eles a apresentação dos sinais de alguma desarmonia mais profunda. Mas nada disso eu via entre as ótimas pessoas que andavam por toda parte. Mesmo que as observasse o tempo todo.

Costumo sair em calças velhas, mesmo porque não disponho de nenhuma calça nova. Nesse domingo, usava também uns tênis tão gastos que a joanete do pé direito já quase despontava, rompendo a napa ordinária. Talvez tenha esquecido de borrifar-me desodorante antes de sair, de onde provinha a incômoda sensação de estar exalando odores mornos e acre-doces, embora não tão intensos. Como andava sozinho e como nunca me acontecia encontrar alguém, isso pouco me importava. Mas encontrei. Encontrei!

Sim, tudo acontece. Sempre acontece. Sempre acontecem coisas, mesmo que a gente sempre tente evitar. São os outros, eu acho. Todos nós. Não sei. De qualquer forma, aqui começam o embaraçoso e o trágico de meu relato, o terror das situações que conto. Sei que sou inofensivo. Sei que nada mudará. E não resisto, tenho de contar tudo.

A esquina, a avenida arborizada, mesas ao ar livre de um conhecido café. Ao fundo, certa melodia agradável fluindo do rádio, de alto-falantes ocultos entre as folhagens. Eu a vi como num sonho, um sonho inesperado e arrebatador. Era ela, ela mesma! Poderia reconhecê-la em qualquer parte do mundo, enquanto vivesse! – enquanto eu e ela vivêssemos! Sozinha e como distraída, aparecia-me subitamente após tantos anos. Que estaria fazendo na capital? Que estaria fazendo outra vez em minha vida? Enquanto eu me permitia observá-la a alguma distância, hesitava entre revelar-me ou simplesmente ir embora dali, sem que ela me percebesse. Senti um tremor suave. Ocorreu-me um pressentimento negativo quanto a esse lance imprevisto, quase a certeza de que eu encontraria ali alguma razão para me arrepender. Mas, se não me agradasse ficar, bastaria despedir-me com um pretexto qualquer, ora, sem dúvida, seria fácil ir embora, e tudo isso eu considerava sem desviar dela, por um instante sequer, meus olhos de cão de caça. Pensando assim, fui percorrendo devagar o caminho entre as mesas, nervoso e esbarrando em guarda-sóis, finalmente alcançando-a pela esquerda.

“Vanessa?”

A garota voltou-se, olhou-me impassível por um momento, então pareceu reconhecer-me.

“Como vai?”, fez ela um pouco surpresa, mas evitando sorrir.

E nisso, o primeiro arrepio de transtorno que me percorreu os nervos foi com relação ao desodorante. Justo nesse dia, eu que nunca encontrava ninguém! Não, não pode ser!, lamentava inconformado. Tremia só de pensar em meus próprios aromas, nada primaveris. E o domingo suave, até aí tão agradável, já começava a conspirar contra mim.

“Que coincidência!”, disse eu animado.

Meu entusiasmo e meu nervosismo fundiram-se como a distrair-me dos gestos mais simples e mais involuntários. Por causa disso, fui me sentando ao lado dela antes que me convidasse. Natural mesmo. Quando me dei conta, já estava sentado. Achei que seria ridículo levantar-me de repente, portanto não pensei mais nisso. Também porque não conseguia deixar de admirá-la de alto a baixo, nem me preocupava em disfarçar esse prazer: o decote em V provocante, lapelas estreitas separando-lhe o pescoço dos ombros nus, braços somente interrompidos por umas pulseiras e um relógio delicado, algum brilho de brincos minúsculos. Lembro-me da saia discreta, dos pés enrijecidos pelos saltos.

“Que está fazendo por aqui, nesta cidade sem fim?”

“Estudando”, disse ela sem ênfase. “Faz três anos que moro aqui.”

“Não diga! Dois anos, puxa!”

“Três.”

Na verdade, eu estava em êxtase. Mal podia crer que a encontrara, que falava com ela novamente. A mesinha redonda mancou quando me apoiei, e isso me assustou um pouco. Ela também deixou escapar uns olhos rápidos de susto. Sua bebida agitou-se no copo. Eu mal podia crer.

A conspiração dos felizes

3. O fato de eu ser ridículo – sequência

1. Como se nunca eu me conhecesse – anterior

Guia de leitura

Imagem: Lee Krasner. Serralhas (detalhe superior). 1955.

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