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Sob a mira da arqueira real
Então, em meio a tudo…
Ainda nos degraus da escada, podia ouvir os poderosos acordes da Grande missa em dó menor, que alguém teria enfiado no aparelho. O casal de crentes! Só me faltava essa. Eles estavam sentados em minha cama, rodeados de gatos, mas não pude dar-lhes atenção. Qui tollis peccata mundi, uma tempestade! Era a música (ao quadrado? ao cubo?) elevada a uma estranha e estonteante potência. E por isso não havia gatos na escada: estavam distribuídos por todos os cantos de meu quarto. Corri à escrivaninha, atirei meus papéis para o lado, deixei uma carta frenética a meu amigo Glauco Pinheiro de Pádua, fazendo-o ver que o funcionalismo público e a engenharia, além de estarem à altura real de suas capacidades, eram também carreiras muito bonitas, por fim implorando-lhe que renunciasse à poesia. Quando pensei que tudo estivesse em vias de se encerrar, surgiu à porta a figura insuportável do senhor Arsênio Siqueira, o maquiavélico representante da Editora Circular. Ele se sentou na cadeira e suspirou de felicidade. Agora, parecia mais velho, mais próximo da morte. Lembrei-me de Glauco Pinheiro outra vez, vi centenas de poetas sendo aniquilados por uma equação de Einstein ou por uma interpretação de Jung. Vi os que sonhavam ser heróis acadêmicos, por não terem sido amados o bastante na infância, ou por mulheres, e os que efetivamente acabaram se tornando heróis acadêmicos, vi seus restos irrecuperáveis entre as páginas de muitos volumes. Vi as rugas dos que passavam ao lado de cachimbos, escrevendo o que também passasse. Vi Orwell e Huxley, julguei que os ouvisse: “Somos profetas pelo avesso. Escrevemos para que nada disso aconteça.”. Senti que tudo girava e me oprimia, enquanto eles repetiam as mesmas frases, tão logo acabavam de pronunciá-las: “Somos profetas pelo avesso…”. Um raio gelado descia por minha nuca e por minha espinha dorsal: eu perdia todas as forças. Pensei que fosse desmaiar ou cair. A neblina glacial e a fumaça escurecida, escapando de chamas invisíveis, misturavam-se no espaço. Então, em meio a tudo, acima de tudo, um rosto conhecido emergiu das intrincadas propriedades do caos, que parecia inesgotável. Antes alegre e contagiante, assumia agora feições serenas e profundamente contidas, à volta de uns olhos agudos e intensos, lábios cerrados como lâminas. O rosto afastou-se, o corpo ergueu-se por inteiro, tomando lugar no centro de tudo o que se desenvolvia absurdamente ao redor: Verena, uma espécie de arqueira mítica, seminua mas esboçada em peças curtas de linho, couro e cordas, colete, saia e sandálias, bracelete revestindo-lhe quase todo o antebraço, cingida por tiras, correias e alças que a faziam mais rija em seu porte, passou a disparar setas que assoviavam no espaço, ao fio de sua linha exata, e batiam secas contra o que não mais me cabia. Um vento de procela devassava-lhe a cabeleira ao longo da face imperturbável, a boca rígida, o olhar ferino. Ela parecia mover-se lentamente sobre si mesma, tudo isso entre labaredas frias e finas nuvens fugazes que a circundavam, o que parecia acentuar a lentidão de seu giro, porém sem alterar o ritmo da poderosa música, que agora ressoava ao fundo daquela epifania profana, cúmplice de um vasto momento de destruição. E assim vi caírem os templos, esfacelarem-se os ídolos. Por um momento, acreditei ter visto o escritório, zumbis meio putrefatos circulando por toda parte, com papéis à mão. Vi apodrecer o último deus que havia, missais infestados de traças, naves devastadas, bibliotecas em chamas, vi morrerem imortais e nascer o impossível, entre ruínas de toda sorte. Acompanhei cada seta devastadora, uma a uma, até que faiscasse a última delas, esta que me era destinada, contra a última porta. Aguardei, enquanto a magnífica arqueira a retesava em seu arco. Uma voz feminina e segura: “Nada há que seja sagrado. Mas tudo cabe em seu tempo.”. Para minha surpresa, ela afrouxou a corda. Baixou a mira. Tornou a seta ao estojo. O vento cessou, e ela se manteve imóvel por certo tempo. Olhou-me de frente, com o poder de sua calma. Por fim, nos fixamos plenamente. Por fim, me sinto pronto a compreendê-la sem reservas, assim merecendo o que restasse, e talvez fosse muito, de minha vida após a vasta confluência de todos os conflitos. Sim, Verena. Sim, querida. Compreendo seu olhar, compreendo tudo. Ainda quero viver.
83. Nada dos bolinhos mágicos – sequência
81. Depressa, o senhor não vê que eu estou fugindo? – anterior
Guia de leitura | Sobre o livro
Imagem: Otto Lingner. Ninfa da água. 1856.
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