Office in a Small City por Edward Hopper

Nada dos bolinhos mágicos

A chuva fina e constante acalmava-me, como se me afagassem a mente seus ruídos ancestrais e repetidos ao infinito.

John Collier. A ninfa da água. 1923.1Despertei à chegada de Mônica, a cópia da chave que eu lhe dera girando ruidosamente na fechadura, a porta rangendo ao abrir-se. Sentei-me na cama, ainda enrolado no cobertor. Ela trancou a porta por dentro. Parecia agitada.

“Como vai meu poeta?”

“Não fale assim. Me respeite.”

A chuva fina e constante acalmava-me, como se me afagassem a mente seus ruídos ancestrais e repetidos ao infinito, melhor dizendo, ao nosso infinito. Minha nuca estava dolorida desde a noite anterior. Tinha batido com a cabeça no encosto da cama, ao deitar-me.

“Seu despertador vai enferrujar por falta de uso.”

Tossi um pouco.

“E você vai acabar vesga, com esse cabelo.”

Mônica deixou a bolsa na cadeira, abriu a mochila térmica sobre a escrivaninha. Não percebeu uma traça graúda que passeava na parede.

“Trouxe chá, biscoitos. Torradinhas. E outro vidro do seu remédio.”

Arg!

“Está melhor hoje?”

“Não sei… Não sei. Falou com o Raposo?”

“Falei”, ela respondeu, preparando-se para a próxima frase.

Mas disse o que disse em seguida, de qualquer maneira. “Vai devolver tudo. Disse que não tem condições de arriscar nada em seu projeto.”

“Eu esperava… Esperava que não, claro. Tudo bem. O que mais ele disse?”

“Foi sarcástico e ambíguo: que você conseguiu escrever um romance sobre nada.”

“Chamou aquilo de romance? Esses editores…”

“Não. Uma maldita colagem. Uma maratona sem propósito.” Estendeu-me uma xícara de chá. “Uma proeza: mais de cem páginas sobre coisa nenhuma. Aliás, ele foi muito educado comigo.”

“Sei… É, eu sei. Eu tinha que tentar.”

Apertei a testa entre os dedos e fiquei de olhos fechados enquanto sorvia o café. Tinha a impressão de estar retornando de uma guerra. Um estranho cansaço punha-me à frente dos olhos formas geométricas irregulares e rapidamente mutáveis, de cores intensas mas também fugazes. Eu podia apostar que ninguém experimentava visões assim desde que David Brewster inventara o calidoscópio. Mas não disse nada a Mônica, ela que nunca escondeu seu desagrado ante minha exagerada mania de citações. Ela nem ligava para calidoscópios.

“Ele disse que você faz isso porque não tem mais o que dizer e quer aproveitar os textos fracassados que não consegue terminar.”

“Não é verdade. Juro que não é.”

“Também acusa você de ser um mentiroso crônico. Torceu o nariz ao citar os trechos em que você promete contar algo mais à frente, se não se esquecer, e acaba por não fazê-lo nunca: ‘Isso é fraude!’. Já pensou?”

“Imagine. Um editor!”

“Tem mais. O relatório do conselho editorial alega, entre outras acusações, que o velho vendedor de livros não tem nenhuma relação com o resto da trama. Afinal, quem é aquele homem?”

“Que trama? Eu o inventei.”

“Inventou?”

“Inventei isso tudo, é claro. Me ponha mais um chá, vamos. E chega disso.”

Ela ergueu as duas mãos abertas à altura do pescoço, como se rendendo a um assalto, soltando-as em seguida.

“Tudo bem. Chega então.”

Mônica tirou o blusão pela cabeça, demorando-se só um pouco a desvencilhar-se de uma dobra que o retinha sob o queixo, pouco o bastante para que eu pudesse admirar sua cintura e seus seios sob a malha preta, enquanto ela mantinha os braços erguidos e cruzados por sobre a testa, o gesto tornando-lhe o corpo mais esguio por um instante, com isso lembrando-me uma de nossas brincadeiras.

“E Verena? Ela se parece comigo?”

“Talvez. Um pouco, sim.”

Em minha imaginação, Mônica só não se vestira ainda com uma kazabaika de veludo vermelho, pois nunca me atraí muito, além de uma natural curiosidade, por relações dessas.

“O acampamento… É aquele onde nós nos conhecemos?”

“Mônica, isso não é importante.” Sorvi outro gole do café e suspirei. “Mas já que tocou no assunto… Sabe que você, ultimamente, vem se tornando cada vez mais parecida com a Sylvia Plath?”

“Lá vem você de novo. Quem é essa agora?”

“Eu não queria admitir, mas você se parece muito com ela. Será por isso que… que…?”

“O quê? Que você o quê?”, disse ela quase num sorriso. “Será que não está na hora de fechar o livro?”

Aceitei a metáfora. Mas agora que eu a observava como nunca antes, achava que teria merecido a descrição física de Sylvia Plath, que fora ela o tempo todo sob minha caligrafia. O chá forte, de aroma envolvente, a temperatura ideal, adequada ao momento, como a tornar mais saborosa a companhia de Mônica, fazia que eu me sentisse quase curado. Pobre Mônica: tenho feito dela uma espécie de secretária e amante avulsa, uma figura de segundo plano, coadjuvante de um heroizinho literário egoísta, quando, na verdade, tanto lhe devo. E penso ainda que toda a literatura agourenta de certos clássicos não vale um seu longo e devotado beijo. O perfil de minha namorada, essa garota contra a vidraça, também contra a chuva, a mesma chuva que hoje altera os tons de sua pele sob os reflexos de um estranho mundo lá fora, menos talvez que o estranho mundo aqui dentro, onde ela é também uma personagem, mais uma vez inspira-me de sua parte alguma audácia contida ou mesmo o inverso do que se possa descrever, quem sabe, alguma serenidade em alerta. Ela voltou o rosto em minha direção.

“Decidiu afinal?”

Mordi um biscoito. Era só um biscoito. Nada tinha daqueles bolinhos mágicos que uma vez corromperam Marcel Proust. Voltei-me ao chá e sorvi o último, delicioso gole. Há três meses, estou enfiado neste quarto. É preciso sair.

“Passo amanhã na editora. Traduzir textos alheios é melhor do que voltar a ser escravo. E isso pode durar muito tempo ainda. O que acha?”

Mônica afastou-se da janela e da chuva, dissolvendo a silhueta que me fascinava, tornando-se outra vez uma mulher de verdade, diante de meu rosto e de meus olhos.

“Passou aquela vontade de me dar um beijo?”

Outra vez o cheiro e o gosto de sua agradável proximidade, ela que não era, que nunca fora outra, nem Sylvia nem Verena.

“Em nenhum momento.”

82. Sob a mira da arqueira real – anterior

Aqui termina o romance A seta de Verena.

Guia de leitura | Sobre o livro

Essa história começa aqui: 1. Guardo-o como quero

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Imagem: John Collier. A ninfa da água (detalhe). 1923.

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