Office in a Small City por Edward Hopper

A tentação de fraudar a própria história

Publicaram uma foto sua, cabeça ligeiramente torcida, fundo de estantes, em que se realçava, antes de tudo, a altivez afetada dos que se sonham gênios ou gigantes, e no fundo não passam de alongadas sombras de anões.

Artemisia Gentileschi. Judith e sua criada com a cabeça de Holofernes.A notícia da morte de Glauco Pinheiro de Pádua apanhou-me de surpresa e pôs-me estarrecido. Julguei que ele próprio tivesse ido ao jornal para retificar o mal-entendido, mas contou-me, por telefone, que aquilo era apenas um truque para chamar a atenção do meio literário, principalmente dos editores, que investem com mais facilidade nos autores defuntos. Publicaram uma foto sua, cabeça ligeiramente torcida, fundo de estantes, em que se realçava, antes de tudo, a altivez afetada dos que se sonham gênios ou gigantes, e no fundo não passam de alongadas sombras de anões. Sobre essa deliberada mixórdia, Glauco Pinheiro escreveu-me uma carta redundante e tão extensa que parecia não ter fim.

Não posso negar que esse lance ridículo de publicidade mentirosa chegou a passear em meus miolos. Arcádio Raposo reuniria minha obra? Editaria meu romance inacabado? Meu último recurso para persuadi-lo havia sido a criação de um anti-herói urbano, um cidadão malogrado e solitário, incapaz de evitar encrencas de toda sorte. Mas o que não entra na cabeça de meu editor é que os leitores se identificam com o fracasso bem mais do que com a felicidade. Todos são assim. Até os vitoriosos. O fato é que, quanto mais me aperfeiçoo, mais me rejeitam. Daí a tentação de fraudar a própria história: mortos, as pessoas passam a considerar-nos com gravidade, deitam outros olhos sobre todas as vezes em que fomos humanos. E assim como tenho acesso à biografia de outros através da arte, é possível que se debrucem sobre minha vida insípida, por culpa de minha obra. Tomara que eu possa enganá-los. Mas… para quê?

Tudo isso já se confunde com minha ficção, de tal forma que não se saberá mais até onde desfolho a verdade, até onde afio as lâminas de minha invencionice. Já é hora de desembaraçar-me de desembarcar deste compêndio de logros, esta enciclopédia de rascunhos, esta antologia de fragmentos nada antológicos. (*)

Busco incessantemente vias alternativas para dizer o que tenho a dizer, enquanto ainda acredito que tenha algo a dizer. Apesar de tudo, hoje é maior o silêncio em mim. O silêncio, o que mais se parece com a verdade. Hoje, não procuro ser agradável, simpático ou amigo de todo mundo. Hoje me importo com o que ninguém se importa. E sou o que ninguém quer ser.

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(*) O articulista que generosamente julgou A conspiração dos felizes talvez atribuísse ao experimento A seta de Verena, antes a seus “Cadernos”, as qualidades de uma fonte para novos esboços, um compêndio não de logros, mas de… sementes.

81. Depressa, o senhor não vê que eu estou fugindo? – sequência

79. Propenso a fragmentar-se – anterior

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Imagem: Artemisia Gentileschi. Judith e sua criada com a cabeça de Holofernes. 1625.

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