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Propenso a fragmentar-se
Mas não sou um obcecado. Todas as artes me atraem, especialmente a música. Elevei ao máximo o volume do aparelho para ouvir a “Grande missa em dó menor”, de Mozart, não para fugir à realidade, mas para experimentar o caos.
Toda espera tem um fim, portanto
Toda espera é uma espera, pois termina
Toda espera termina, portanto não é sequer uma espera
Toda espera
Não é de admirar que tudo que eu escreva esteja a um passo de desintegrar-se, volatilizar-se no vazio, contrariando sua própria pretensão de firmar-se como literatura. Não me suponho um autor apocalíptico. O desgaste, a saturação, o tédio, as roupas apertadas são o que me move, não a falta de caminhos. Talvez, no fundo, eu acredite em alguma coisa. Nada é impossível – é o que dizem por aí.
Um suplemento literário atesta que o livro de Cassiano C. Castilho acaba de entrar para a lista dos mais vendidos. Como pode ser? Normalmente um autor se destaca pela atraente trama que é capaz de criar ou pela estilística específica que faça dele a expressão de um pensamento singular, original ou, no mínimo, agradável. A trama, cuja sinopse passo a ler em seguida, é o que de mais simplório e redundante me parece possível produzir. Portanto, fica claro que a surpreendente posição de seu romance na lista de sucessos não se deve à inteligência do enredo. Agora, quanto à linguagem, que já tive a oportunidade de conhecer por meio de outros textos seus, seria impossível. Bem, que lhe sirva a classificação entre os muito vendidos, seja qual for, afinal quem entende os leitores?
Adolescente, tive de trocar muitas vezes as lentes dos óculos, por causa de minha miopia progressiva. O médico aconselhou-me a evitar o excesso de leitura e a escrever menos, ainda assim, sob luz adequada e intensa. Meu pai dera-me de presente a luminária que ainda conservo, e esse foi o único conselho que segui: o de escrever sob uma luz intensa.
Até hoje, a literatura é uma maneira de desenvolver essa minha mesma miopia. Mas não sou um obcecado. Todas as artes me atraem, especialmente a música. Elevei ao máximo o volume do aparelho para ouvir a Grande missa em dó menor, de Mozart, não para fugir à realidade, mas para experimentar o caos. Em meio ao Qui tollis peccata mundi, um arrepio. Uma batida. Eu a conheço. É Glauco Pinheiro. Não, é o velho Siqueira. Da última vez que esteve aqui, a porta estava aberta. À sua chegada, ao levantar-me da cama, caí – e isso o fez sorrir maliciosamente. É terrível. Só uma vez consegui escapar pelos fundos, depois de vê-lo subindo a rua. Também já tentei agir assim com Mônica, sem sucesso. Não é o velho Siqueira, é Glauco Pinheiro. Não sei, não tenho certeza, pode ser o velho mesmo. Não: são os dois juntos. É isso! Sei que são os dois. Os dois!
Glauco Pinheiro.
“Não consigo me livrar de vocês”, brinquei.
“Vocês quem?”
“Aliás, é preciso ter muito dinheiro para igualar a façanha de Salinger e Pynchon.”
“Qual?”
“Não ser encontrado no século vinte.”
Ele não me deu a mínima atenção. Tinha vindo convidar-me para o lançamento de um livro de poesia cuja autora era psicóloga, pedagoga, socióloga… “Deus a preserve”, eu disse. Aceitei imediatamente, para evitar discussões. Na noite do lançamento, ele não haveria de me encontrar nem que virasse a cidade do avesso. Pois eu não havia jurado jamais perder uma noite sequer com o que eu não acreditasse?
No que acredito?
Antigamente, quando acreditava que éramos diferentes dos outros animais, eu brincava de imaginar a alma de cada pessoa por trás de seus olhos. Hoje sei que não há motivo para que este ou aquele seja eterno, pois somos dispensáveis até mesmo neste mundo, que dirá no âmbito do universo. Que Deus não existe, todos sabem. O problema é deixar de acreditar. Quem dera fôssemos como os pássaros, que não têm senhor. Olhai os lírios do campo: eles não vivem sem Deus?
Até hoje, uns pensionistas avaliam-me com grande curiosidade, eu sei. Não compreendem que se possa pensar livremente e, assim mesmo, viver. Querem saber por que não tenho fé, uma vez que Deus inegavelmente existe. Querem saber por que não arranjo um emprego, por que não me animo a me casar, por que não dou atenção às celebridades, por que não vibro com os gols da rodada, por que não vejo TV com os outros e por que não corto o cabelo como todo mundo.
“Não quero dar palpite, mas…”
“Não que eu ache errado, mas…”
Todos gostam de dar conselhos/palpites, não sem antes preconizar que detestam dar conselhos/palpites. Mas ninguém gosta de:
– ser chamado burguês;
– idem, puritano/moralista;
– idem, conservador (e afins).
Pois todos gostam de:
– parecer liberais;
– dizer que em sua família e em sua casa são todos meio malucos;
– dizer isso de si mesmos;
– fingir-se humildes;
– dizer que vivem duros;
– dizer que sua profissão é ingrata e incompreendida;
– parecer muito ocupados.
.
Só o senhor Lineu Domingos não ouvi ainda dizer que vive muito ocupado, mas isso seria demais.
Eu andava outra vez com aquela sensação de que algo muito importante estava prestes a acontecer em minha vida. Lembro-me de haver sentido o mesmo quando conheci Verena, no acampamento, mais tarde quando me dei conta de que ela iria me deixar. Saí às ruas como se a procurasse e acabei embriagado, no interior de um conjunto de lojas, errando pelo labirinto de vitrines espelhadas, até cair no repuxo ornamental que demarcava a encruzilhada das galerias. Eu já estava em crise, quando perdi o equilíbrio e me esparramei na água rasa. O segurança tirou-me de lá, estirou-me no chão liso de ladrilhos, e tudo o que eu via era um círculo de curiosos encarando-me como em um nebuloso pesadelo. O mais próximo perguntou-me se eu podia ouvi-lo, se estava bem.
“Eu odeio a humanidade!”, foi o que eu disse.
Pensei ter visto, mas talvez fosse parte do delírio, uma mulher grisalha, com a cara infeliz dos cristãos, estendendo sobre mim um pequeno crucifixo. Isso trouxe minha mãe e me fez mais irascível. Também pareceu-me ouvir, de um deles, que um animal arruaceiro como eu não estava preparado para conviver com a civilização.
“Eu odeio a civilização!”, esperneei. “Vão todos à puta que os pariu!”
No entanto, sonhava escrever, para atiçar-lhes a imaginação, as mentes adormecidas ou equivocadas, sonhava salvar-nos a todos. Mas quem entende os escritores?
Quem entende os acadêmicos? E os obstinados como eu? E os perfeccionistas, como meu amigo Glauco Pinheiro de Pádua? E os leitores de Américo Cabral? E os canastrões, como Cassiano C. Castilho? Muito mais fácil decifrar as ligações químicas usando a física quântica.
80. A tentação de fraudar a própria história – sequência
78. Por favor, esqueça essa bobagem – anterior
Guia de leitura | Sobre o livro
Imagem: Juan Gris. Violino e copo (detalhe). 1915.
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