Office in a Small City por Edward Hopper

A arte é o cristal – o resto é a vida

Em contrapartida às situações fortuitas que caracterizam o acaso das vidas humanas, inferi que a arte poderia ser a linha reta que corta, feito uma seta, os círculos do tempo, principalmente o labirinto de nosso século, infestado de burburinhos e mediocridade.
A arte é o cristal. O resto é a vida. Será?

John Singer Sargent. Rua em Veneza. 1882

A meu amigo Ermelino Espíndola

Basta por hoje. Meus olhos queimam. Amanhã darei sequência aos conflitos do malfadado escriturário e sua cédula infernal. É preciso aperfeiçoar a linguagem. Há frases cujo efeito ainda não se encontrou plenamente; outras soam coxas ou mal acabadas. Sinto às vezes que certos períodos se estendem como uma vegetação retraída pelo inverno, como se carecessem de tempo e condições propícias para vingar. Ainda pairam lacunas entre certo parágrafo e outro. Amanhã.

Ontem, no metrô. Ouvindo por acaso a narrativa contínua, abundante em digressões, de uma senhora falastrona, acerca dos pequenos contratempos e imbróglios de seu cotidiano, ocorreu-me esta pergunta: será que posso fazer de minha vida uma unidade coerente, imune às sinuosidades do dia a dia, algo semelhante à composição de uma tela, uma peça musical ou um poema? (Pensei, claro, em um poema de Sylvia Plath, não desses de que os meus contemporâneos se orgulham.) Em contrapartida às situações fortuitas que caracterizam o acaso das vidas humanas, inferi que a arte poderia ser a linha reta que corta, feito uma seta, os círculos do tempo, principalmente o labirinto de nosso século, infestado de burburinhos e mediocridade. A arte é o cristal. O resto é a vida. Será?

Meu rosto no espelho, a luminária direcional e o fundo negro que é todo o meu quarto. Esses olhos perspicazes, agudos, como a transcender a aura e o arco das sobrancelhas, davam-me ver o que via enquanto eu era, como se ali eu pudesse reter, entre os dedos, um fragmento da existência, o retângulo do espelho, o cubo do quarto, o foco de luz, o cilindro do dia: um sólido geométrico, cristalizado na abstração do presente – tudo isso como se não houvesse o tempo e a morte. Como se não houvesse minha própria e certa dissolução. E nem eu passava, nem percebia. Pensar que eu havia sido lançado ao mundo para vivenciar tantos e vários bizarros conflitos, destinado, como todos, a desembocar na morte… E também isto: enquanto as coisas nos acontecem, não parece que irão envelhecer. Não parece que as coisas que acontecem, deixando bem claro, irão envelhecer. E não há que lamentar, pois assim é que o tempo nos leva, não há outra maneira. O que são essas trevas ao meu redor? Diante de tudo, atrevo-me a confessar que tenho um sonho. O grande objetivo a que me encaminho secretamente, dia após dia, acima do que quer que seja, meu ideal e desejo mais íntimo. Assim como os católicos imaginam um lugar eterno onde uma infinidade de espíritos os despersonalizem, rendidos à eternidade, e os espíritas falam em tornar-se, ao fim de tudo, energia e pura luz, também eu almejo ardentemente, um dia, ser nada e ninguém.

Deixei minha cidade, porque queria uma nova vida. Quando parti, não pude evitar lembranças e reminiscências. Entre todas, minha mãe, brandindo o crucifixo, ensinava-me a enfrentar as dificuldades da vida com o auxílio dos seus, que eram também meus, símbolos.

“É este quem nos guiará. E nos livrará de nossos inimigos. E nos conduzirá à felicidade eterna.”

“Mãe, não me importa ser feliz. O que mais quero é viver.”

Deixei minha cidade, parti. Queria uma nova vida.

Durante a viagem, sonhei que meus avós seguiam para uma guilhotina da qual eu não tinha notícia. Era pequeno e ainda assistia ao mundo com olhos tranquilos, embora atentos. Logo vi crianças atrás de mim. Sim, eu também seguia. Adultos atrás de mim, crianças atrás deles. Já não via meus pais à minha frente. Só a lâmina inexorável.

Arcádio Raposo perguntou-me, após a leitura de um conto de minha modesta autoria, por que eu não digo de uma vez que o ser humano não passa de um macaco sem futuro. É que logo esses animais aprenderão a ler, e não pretendo ofendê-los.

“O objetivo de nosso grupo é a autodissolução. Um tempo em que não mais seja necessário lutar pela preservação dos direitos do homem, quando isso for natural em todas as sociedades, em todas as nações.”

“Quem sabe não será também esse o destino final da arte. Literatura. Teatro. Cinema. Por falta de conflitos.”

“Não da música.”

“O que será melhor?”

“A esta altura, ninguém mais sabe o que é melhor.”

É isto: a arte, como a ciência, vem alcançando seu estágio final. À parte as acrobacias da vanguarda e o preconceito contra os antigos, toda arte encontra sua linha de equilíbrio, o que a sustenta através dos tempos, da mesma maneira como não se exibe um filme com imagens de ponta-cabeça ou não se escreve um livro da direita para a esquerda – não no Ocidente, claro. Ora, talvez seja também esta, por fim, a minha tendência, como nos planetas de temperatura média, o equilíbrio propício à vida. O sol ideal. A radiação benigna. O dia de luz exata.

77. Fantasias da razão – sequência

75. O inverno segundo teu semelhante – anterior

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Imagem: John Singer Sargent. Rua em Veneza. 1882.

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