Office in a Small City por Edward Hopper

Antes que o dia em questão me encontrasse

Recordava a entrevista, que desastre tudo aquilo!
Eles precisam de um redator profissional, isso é horrível.

Emmanuelle Vial. Esplendor e decadência.Eu acabava de perder o emprego. Saía do escritório para as ruas, pela última vez. As ruas de verdade, nada metafóricas.

Durante muitos dias, errei pela cidade, ainda sem noção do que faria em seguida. Chegava a passar tardes inteiras estirado na cama, distraído das atitudes e necessidades mais elementares, o que ia causando a aborrecida sensação de que tudo aquilo estava prestes a me consumir, a me vencer de todo. Nas calçadas, além de esbarrar em qualquer um que não se desviasse de mim, eu escutava por acaso que diziam algo sobre o dia seguinte, uma terça-feira, quando eu podia jurar que seria uma quarta, ou mesmo não atinando, no momento, se o dia em questão era a quinta passada ou a próxima, que logo e antes que eu percebesse, chegava e me encontrava como em qualquer quinta ou terça ou quarta. Andava tão confuso que lia frases em bancas de livros espíritas, mensagens de cartões e outras coisas estranhas que me distraíam de qualquer verdade. Uma delas estendia-se por quase toda a última capa de um desses livros, feitos para nos conduzir ao sucesso, e assim rezava:

Você é aquilo que deseja ser, deseje sempre ter um ideal a realizar e sempre realizar aquilo que se deseja, pois o que se deseja é sempre o que se deve realizar, embora o que se deseje seja sempre difícil de se realizar, mas mesmo assim deseje sempre e continue realizando o que deseja.

Eu deixava o livro, saía da banca, abatido e desgostoso. Querem a minha ruína, eu pensava. Recordava a entrevista na editora – que desastre tudo aquilo! Eles precisam de um redator profissional, e isso é horrível. Apostam que, em pouco tempo, não existirão mais escritores de verdade. Horrível. Como podem pensar assim? Como pude, eu mesmo, aceitar um trabalho desses, mesmo que por um ou dois dias? Sentia vertigens e, por vezes, fome.

71. Outro Hugo: sensível e teimoso – sequência

69. Querida, eu posso escrever tudo – anterior

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Imagem: Emmanuelle Vial. Esplendor e decadência (detalhe superior). 

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