Office in a Small City por Edward Hopper

À beira de um ataque de abismos

Claro que não sou o que normalmente chamam um homem de boa vontade, nunca fui.
Mas nesse dia, especialmente, eu me acreditava a criatura mais desprovida de vontade do mundo.

Paul Klee. O que pendura tudo. 1930No centro da cidade, entrei por uma galeria que me serve de atalho e, com isso, ganhei algum tempo. Quero dizer, não perdi tempo. Quero dizer… Francamente, isso de perder ou ganhar tempo é muito estranho! Tempo não se ganha, não se perde, não se nada. Mais tarde, chegando ao escritório, lembrei-me de que o tempo não existia. Dizer que me perdia em divagações sobre um certo assunto e esquecia-me do primordial: o próprio assunto não existe. Isso resolve tudo, não é? Isso, aliás, começava a voltar-me, o gesto da corajosa Camila. Eu teria de passar mais oito horas de minha vida, desse tempo que não existia, encarcerado no escritório.

Também lá comecei a derrubar coisas, a saber:

a) carimbo datador;

b) caneta;

c) calendário de mesa

Ia caindo tudo de minhas mãos trêmulas, enfraquecidas pela má vontade. Claro que não sou o que normalmente chamam um homem de boa vontade, nunca fui. Mas nesse dia, especialmente, eu me acreditava a criatura mais desprovida de vontade do mundo. Sem vontade alguma. Nenhuma. O que é pior do que má vontade.

Não bastasse eu estar derrubando coisas, as atitudes redondamente banais dos colegas proporcionavam-me pungentes lições de tédio. Primeiro, um deles passou assobiando o que podia ser tudo, menos música, isso a caminho do arquivo. Afinado como uma gralha. Como pode alguém assobiar com tanta naturalidade em meio a condições tão perturbadoras? Passos alegres rumo ao arquivo. E tudo sempre acaba no arquivo, não importa o que digam. O tédio aceito gesto por gesto, tragado mansamente por todos, à luz de outra manhã, e ainda o fato de ser uma manhã como outras, justamente por parecer uma manhã como outras, parecia-me inquietante. Uma cliente repetia que seu nome não se escrevia com S, mas com Z. Verdade. Ela insistiu nisso, e era apenas um recado escrito à mão. Não era S, era Z. Isso. Isso mesmo. Não, S não: Z! Afinal, era esse o seu nome, cabia a ela entender tais diferenças como importantes ou não. Que mundo este: multidões da Ásia à América, uma pluralidade imensurável de indivíduos, todos quase os mesmos de tão parecidos… S. Plurais. Como se ela ou o seu nome ou qualquer de nós fosse precioso e necessário, como se um dia tudo isso pudesse ser mais do que nada, talvez uma… um… Nem sei. Z.

“Obrigada”, ela disse.

Nomes com S ou com Z, todos ao arquivo.

“Pode deixar que eu não esqueço”, garantiu o colega que a estava atendendo.

Ora, e como sabemos que é esta (A, B, C…) a ordem das letras? Quem determinou essa ordem? O que impede que se enfileirem noutra sequência (R, F, Z, H, M…) e por que não seria essa outra a ideal? Em que se baseia… Vamos, vamos. Pare com isso. Você está trabalhando. Você está doente.

Um colega chamou o chefe três vezes seguidas (!), com a mesma ênfase, e isso martelou-me a alma de monotonia, meu cérebro de quarta-feira, já meio morto e ausente.

“Sempre, quando eu chego, ela vai embora. Todo dia. Sempre, quando eu chego, ela vai embora.”

Era a voz de um outro, justamente um que fala pelo nariz, referindo-se à colega de seção. (Mas eu, doente que estava, fiquei me perguntando quem era ela: a inspiração? minha boa vontade? minha esperança? O que ia embora quando ele chegava?) A pessoa com quem ele julgava estar falando não lhe dera ouvidos, por entender que não se dirigisse a ela.

“Sempre, quando eu chego, ela vai embora. Todo dia. Ouviu?”

Mas o interlocutor desse funcionário enfadonho não o havia notado ainda. E ele então repetiu, mais enfático:

“Sempre, quando eu chego, ela vai embora. Todo dia. É com você mesmo! É, você mesmo. Ouviu agora?”

“O quê?”

“Sempre, quando eu chego, ela vai embora. Todo dia.”

“Ahn…”, fez o outro.

Um horror, concordo. Mas isso não é nada. Já presenciei cenas mais chocantes em churrascos, formaturas e casamentos, nas poucas vezes em que consenti ser arrastado a um desses eventos fantásticos.

“Todo dia.”

“Ahn…”

Felizmente não entendi o que uma colega tentava explicar ao subchefe, mas era inevitável que eu a ouvisse. Ele é que não queria ouvi-la. Os dois de pé, frente um ao outro, ele fechava os olhos e tornava a abri-los com arrogância, tocando as mãos abertas nas pontas dos dedos, como se mantivesse um esporão apontado para ela. Era um tipo que dizia veja bem, veja bem, desses que nem tentam disfarçar suas limitações. Como a moça não parava de falar, ele tentava interrompê-la com uma espécie de calma forçada, e repetindo como um autômato:

“Veja bem. Veja bem…”

Mas ela falava e falava.

“Veja bem…”

No fim de tudo, quando ela terminou, ele disse:

“Veja bem: o que diz a instrução?”

Que o diabo me carregue, eu tinha de contar isso! Não é justo que tais situações e tais pessoas só incomodem a mim. Isso tem de ser sabido por todos, tem de ser compartilhado, alguém tem de fazer alguma coisa – no mínimo, indignar-se como eu.

O expediente da manhã arruinou-me os nervos. Se eu ainda estivesse com a febre de terça, teria tido algum ataque, sem dúvida. Uma crise de histeria ou algo assim incontrolável, escandaloso. Mas resisti.

Quarta-feira (A conspiração dos felizes)

Arremessando a bola para bem alto – anterior

Em meio a tudo tão certo – sequência

Guia de leitura

Imagem: Paul Klee. O que pendura tudo. 1930.

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