Office in a Small City por Edward Hopper

Arremessando a bola para bem alto

Afinal, o que vale viver de uma maneira ou de outra?
Às vezes passo por ali, outras vezes não, o que não faz nenhuma diferença.

Joan Miró. O eremita. 1924.Logo acima, na travessa onde moro, abre-se uma entrada sinuosa a partir da qual a rua se bifurca e onde moram muitas pessoas, quase se esbarrando de tão juntas, num aglomerado meio vila, meio cortiço. Há roupas penduradas por toda parte, mulheres ralhando com crianças; do fundo de algum pátio, uma voz gritando por alguém repetidas vezes, até tornar-se rascante, desesperada e aguda, como se a tal pessoa, chamando pela outra, estivesse sendo brutalmente esganada; além de cães barulhentos e ruídos de toda sorte, o que causa a má impressão de a vida ser inútil. Vejo essa gente nos mesmos lugares, dia após outro, perdida na ignorância de incontáveis gerações sucessivas, passando pelo mundo sem jamais buscar algo além de seu cotidiano grosseiro e… Os filhos, sempre muitos, aprendem a ser como os pais para que tudo continue igual, e isso por muitos séculos, como no passado. E não me refiro apenas aos pobres, evidentemente. É que moro por ali e os tomo como exemplo de aridez. São muitos os exemplos vivos em todas as classes sociais. Afinal, o que vale viver de uma maneira ou de outra? Às vezes, passo por ali, outras vezes não, o que não faz nenhuma diferença. Nesse dia, passei pela vila, e isso me encheu de tédio.

Bola e crianças no meio da rua. Malvestidas, descalças, os pés sujos já calejados daquele tipo de chão. Ouvi que uma delas se chamava Camila. Também percebi, quase sem querer, que havia uma espécie de rixa entre elas, principalmente quando uma menorzinha retirou-se da roda, emburrada, encostou-se a uma calha e ficou ali, os braços cruzados, a cara do avesso. Acho que não queriam que ela brincasse, não sei bem. Camila arremessou a bola para o alto, de propósito, para bem alto, atirando-a ao último telhado das casas irregulares, com isso pondo fim à brincadeira. De repente, não sei por que razão, esse gesto audacioso e extraordinário despertou em mim um vivo entusiasmo, um instante de surpreendente felicidade, e meus olhos chegaram a brilhar por um momento. Tornei a confundir-me com o que sentia e, portanto, não dei mais atenção a nada daquilo.

“Isso resolve tudo, não é, Camila?!”, disse um moreninho, em tom de ironia e indignação.

A menorzinha era parecida com Camila, talvez fosse sua irmã, o que considerei bem provável.

“Isso resolve tudo, não é?”, ele repetia, impaciente por não ouvir resposta.

Tudo o quê?, pensei estupidamente. O jogo? Que jogo era aquele? Recordei tempos de infância, brincadeiras truncadas pela agressividade das crianças, discriminações. Meus tempos de grupo e ginásio, as rodas das quais todos participávamos… – e ninguém nunca atirava a bola de propósito para muito alto, para algum telhado fora de nosso alcance. Com sua decisão de acabar com o jogo, a pequena Camila conquistava subitamente minha simpatia, fazendo-me lamentar que outros não agissem assim em tantas vilas do mundo, em tantos outros momentos e situações, em todos os países.

“Isso resolve tudo, não é?”

Não. Não resolve. Mas seria um bom começo.

Quarta-feira (A conspiração dos felizes)

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À beira de um ataque de abismos – sequência

Guia de leitura

Imagem: Joan Miró. O eremita. 1924.

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