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Aperfeiçoamento no processo de derrubar coisas
Meus livros são todos interrompidos por papéis avulsos, que enfio neles como marcadores, e páginas dobradas com orelhas nada exemplares.
Eu tinha ainda uns dez minutos, à toa. Duraram uma eternidade. Caberia minha vida inteira nesses dez minutos. À toa. Abri o periódico literário que havia chegado na segunda-feira, mas que eu não havia folheado ainda. Fotos de poetas descabelados e escritores muito sérios, posando um pouco de lado, mão no queixo, para que todos vissem como eram inteligentes, enojaram-me. Um deles parecia estar fazendo um grande esforço para pensar, considerando-se as sobrancelhas franzidas, a testa enrugada, três dedos tocando a têmpora. Todos gênios. Os mais antigos apoiando a cabeça na mão fechada; contemporâneos, de óculos redondos, cabeça erguida como se fossem a própria encarnação do intelecto, sublimes de tal forma que mal se acreditaria pudessem sofrer uma diarreia. Por um momento, estranhei que um dia me houvessem convencido a assinar esse festival de esquisitices. É que antes eu não os via, a esses tais autores, dessa maneira. Sou às vezes muito ingênuo, e cheguei a admirar alguns deles, em outras fases. Nessa manhã, eu não conseguia sequer interessar-me pelos tópicos culturais, que eu costumava ler inteiros. Dificilmente leio alguma coisa até o fim. Meus livros são todos interrompidos por papéis avulsos, que enfio neles como marcadores, e páginas dobradas com orelhas nada exemplares. Tenho uma coleção de livros deixados pela metade, além dos que foram abandonados na página 17; alguns, na página 3, que estão entre minhas raridades; outros ainda, na 245, faltando por vezes 20 ou 30 páginas, apenas, para o final. Nada me convence a terminá-los. Mais à frente, folheei entrevistas com uns autores mais modestos, mas que se deixavam fotografar, assim mesmo, por ângulos diferentes, gestos simulando espontaneidade e, claro, pelo menos em alguma proporção, cedendo a sua cota de fingimento. Outros, era como se dissessem a cada palavra: “Oh, como sou humilde! Como sou humilde, meu Deus!”. Academia, eventos. Imortais nos trajes com que serão sepultados. Que mais? Insisti em experimentar um teste de inteligência proposto nas últimas páginas, o que me entusiasmou a princípio, levando-me depois a uma careta de autodesprezo: eu estava me saindo bem demais, e de repente achei que aquilo não valia nada, nada mesmo. Não deixava de ser curioso que medissem a inteligência de alguém com aqueles testezinhos bizarros. Digo isso porque conheci uns sujeitos de Q.I. notável, que na verdade não passavam de pessoas frias, sem graça, incapazes de uma tirada espirituosa. Paradoxalmente, muitas vezes fui surpreendido por observações brilhantes entre a gente mais simples. Ora, um questionário desses! Levantei-me de um pulo, atirei o periódico sobre a cômoda, acabei esbarrando numa ponta de página e com isso o derrubei ao chão de vez, quase não podendo evitar novos acidentes, entre um vidro de colônia e um desodorante. Eu estava derrubando tudo.
Quarta-feira (A conspiração dos felizes)
Pensamentos preguiçosos e pequenos sustos – anterior
Arremessando a bola para bem alto – sequência
Imagem: Franz Kline. Sem título (detalhe inferior). 1957.
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Comentários
7 respostas para “Aperfeiçoamento no processo de derrubar coisas”
Estilo breve, claro e contagiante. Parabéns!
Virgínia, muito obrigado. Fico contente em saber que gostou. Abraços.
Te achei sem querer, estava procurando uma imagem de Franz Kline e o encontrei… Belo texto. Parabéns.
Olá, Rodrigo.
Que bom saber que gostou.
Muito obrigado pelo comentário, fico honrado.
Abraços, escreva sempre, é um prazer.
Acabei de descobrir seus textos, sem querer, procurando no Google uma imagem – aí linkou e gostei muito do que li. Vou acompanhar com muito gosto, Perce.
Que bom saber que está gostando, Luiz, obrigado pelas palavras.
Grande abraço.Gostei gostei muito Perce, sua maneira de descrever tudo o que aconteceu, é genial.
Abraços…
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