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Febre – e outras emoções em cores
A essa altura, eu já sentia a minha febre.
Hoje acordei muito cedo, antes mesmo do despertador. Isso não é normal, pois geralmente tenho um sono de pedra e duvido até que conhecesse o sol da manhã, caso não houvesse despertadores. Mas algum inventor insensível os criou para contrariar as leis da natureza, inclusive a natureza própria de cada criatura, Deus o perdoe.
A primeira coisa que me estranhou, ainda deitado de costas, foi quando levei a mão à testa, verificando uma temperatura normal. A febre havia passado. Sem que eu ingerisse sequer um comprimido, constatava-me pálido e um pouco frio, bem diferente de como me sentia no dia anterior, quando julguei que talvez morresse de febre durante a noite. Admito, é ridículo. Não passo de um exagerado. Mas tinha febre, com certeza.
A febre de terça-feira havia se instalado sem nenhum motivo aparente. Eu nem mesmo estava resfriado. Não recordo um espirro, um arranhão que pudesse inflamar, e assim mesmo… Bem, certas febres não são comuns. Não posso afirmar exatamente como ou quando ela começou. Mas lembro-me de havê-la notado, além de uma simples suspeita, ao final do expediente, à hora da saída, quando me perdia entre a multidão das seis, pelas ruas do centro. Também me lembro disto: ontem, o crepúsculo trouxe cores estranhas mas belas. Nuvens tingiam-se de um ocre quase ferrugem, certos tons de sépia entre algum havana efêmero e… Que importa isso? Outros matizes filtravam-se através da atmosfera metropolitana, poluída de muitos gases, cuja densidade tornava o último sol uma bola macia de um místico lilás. Parecia mesmo irreal, com isso fazendo do movimento urbano uma visão também onírica. Pessoas muito amarelas, ônibus de vidros incendiados, calçadas escuras, em contraste com o fogo róseo dos edifícios mais próximos. Tudo o que existia participava de alguma forma do calidoscópio de surpresa. A essa altura, eu já sentia a minha febre.
Tanto a hora estranha impressionou-me que eu havia me detido como por acaso, os que passavam esbarrando-me aos tropeções ou ignorando-me, como se eu não estivesse ali. Mas eu estava. E como! E como descrever o que se passa de fascínio em mim num desses momentos? A confusão maravilhosa e as cores caóticas hipnotizaram-me, detendo-me fora do cotidiano, eu tão longe, tão dentro de tudo. Um calafrio de febre percorreu-me a espinha e as pontas dos dedos. Bateu-me a sensação obscura de alguma angústia desconhecida, também uma espécie de felicidade por estar ali, embora pouca. Os sentimentos mais sombrios arrastavam-me com maior intensidade, fazendo-me quase acreditar que se tratava de um pressentimento, um presságio perigoso do que estaria por vir, não tanto uma situação externa, mas algo inteiramente dentro de mim, o que era pior, uma crise talvez. Uma lufada de vento subiu de repente, dando vida a uns papeizinhos amarrotados e girando-os pelas calçadas. Vi dois estudantes protegendo-se com cadernos e uma freira segurando a touca para que não voasse – para que a touca não voasse, explica-se. Alguns apertavam os olhos contra a poeira e os ciscos. Já estamos no início do inverno, e as pessoas saem às ruas enfiadas em jaquetas ou em blusas de lã, crianças com luvas e cachecóis, mendigos em restos de cobertores que amarram fortemente ao pescoço. De fato, já está bem frio. O vento imprevisto armou também despentear as mulheres, revolvendo principalmente os cabelos de uma garota que observei por acaso, a dois passos de mim. Ela esperava para atravessar a rua, enquanto seus cabelos se desmanchavam com eventual sensualidade, como se o vento pudesse assim violentá-la de alguma forma, moldando-a em novos padrões de beleza e tornando-a outra por um momento. Tudo isso sob focos de luz e sombra, entre púrpuras e amarelos, o mesmo sonho concreto de tarde, ventania, gente em movimento. Ah, como há tempos eu não sentia tão apaixonadamente a vida ao redor, essa pulsação autônoma, esses matizes sem nome que a tudo emprestam brilho e penumbras fugazes, como tudo foi belo! E logo outro calafrio impregnou-me de certo tremor. A febre já se apoderava de mim.
Quarta-feira (A conspiração dos felizes)
Mas hoje era outro dia – sequência
Imagem: Albert Kotin. Sem título. 1966.
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