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O inverno segundo teu semelhante
Não há nada e nem pode haver algo mais caro ao ser pensante do que a vida.
– Giacomo Casanova, Memórias, 1826.
Por fim, a hora do almoço. Deixo o escritório, mais deprimido que quando cheguei, pela manhã. O sol ausente, o céu brumoso de inverno e minha última jaqueta sem esperança de reforma me oprimem com sua propriedade de infligir pensamentos obscuros, como a súbita e conturbada lembrança de que não conto com dinheiro algum, e não posso sequer almoçar nesse dia.
Resisti, por não sei que abomináveis vícios de nossa formação moral, a embolsar furtivamente uma quantia, cujo comprovante tinha em meu poder, destinada a engordar as receitas do escritório onde tenho de me enfiar todos os dias para sobreviver. Depois de repassá-la ao nosso supervisor, senti remorsos, condenando-me pelos sintomas de covardia instintiva que faziam de mim um escravo desprezível como os outros.
Olho ao redor. Pessoas em movimento, automóveis, figuras avulsas, fachadas repetindo-se em perspectiva pelas ruas do centro comercial. Por toda parte, umas papeletas impressas suplicam ajuda ao menino gravemente enfermo, cuja única esperança é uma onerosa cirurgia a realizar-se em outro país. Ouvi sobre a campanha na TV: donativos chegam de todos os estados, toda a nação está mobilizada. Em um mundo onde as coisas tendem à dissolução, onde o tempo e a morte minam o rosto das pessoas e as arrastam em seu torvelinho cotidiano de estranhas situações, no meio de tudo, um menino pede socorro.
Preciso comer. Não tenho como pensar em qualquer outra coisa agora. O menino anseia pela vida. Eu também. Além do mais… Que é isso?! Alguém me agarra de repente! Nunca vi essa senhora enrugada e simplória que me retém pela manga, mas ela age como se me conhecesse. Parece ter pressa.
“Sei que você, meu filho, é um rapaz honesto e trabalhador. Quando voltar, me faça essa graça de depositar na conta do menino. Minha patroa me mandou, mas sou doente, não posso esperar na fila. Deus abençoe.”
Faz um sinal da cruz sobre o meu rosto e desaparece entre os passantes. Volto-me para o que tenho em mãos, e meus olhos nublam-se por um momento, atordoados pelo insólito: uma nota de cem reais, clipada à guia de depósito preenchida em favor do menino doente. Percebo que estou em frente ao banco, e minha jaqueta tem a cor do uniforme dos funcionários. Meu crachá do escritório, esquecido no peito. Cem reais.
Dou uma volta ao quarteirão, talvez me ajude a aclarar as ideias. Pressinto que algo me encobre e desafia, assim como é este dia de nuvens e verdades mal reveladas, apresentando-se aos homens como a metade de outro silencioso pesadelo. Posso simplesmente ir ao banco, com isso libertar-me dos demônios que por vezes frequentam minha consciência tendenciosa. Só preciso de tempo. Dou outra volta. Tento esquecer. Sinto fome.
Posso almoçar, depositar o restante. Ninguém saberá. Mas eu sim. Terei doado uma parte, e isso me fará sentir melhor. A cédula de pouca circulação mostra-se ainda em perfeito estado, como se assumisse, na unidade de suas cores e nuanças, a condição de uma peça inteiriça, que não pode ser gasta ou trocada, maculada por uma transação avulsa que resulte em cédulas menores, encardidas e ordinárias. Além disso… Mas como? Onde estou com a cabeça? É apenas dinheiro. Dinheiro! Uma cédula tão suja como qualquer outra, como qualquer quantia ganha honestamente ou não, o que faz mover a engrenagem do mundo na esteira das desgraças e dos conflitos coletivos, e separa a vida agourenta dos que não o possuem da vida patética dos que o possuem.
O frio é intenso. Decido que devo guardar minha cédula até o dia seguinte. Mastigo um sanduíche de queijo na lanchonete imunda do largo, onde conheço o proprietário, um alagoano grosseiro e antipático, que pendura minhas contas e pode esperar mais uns dias. Lá assisto, por acaso, às últimas notícias sobre o garoto. Falta pouco para perfazer o montante necessário. Atores e atrizes da telenovela reforçam os apelos. A família já dispôs de tudo que possuía. Os médicos, também envolvidos, estão… Não posso. Não posso mais. Como pude pôr em dúvida um gesto assim? Vou agora mesmo ao banco, aguardo na fila, sacrifico meu breve intervalo, chego atrasado, não importa! – saio engasgado com o refrigerante que mal terminei.
No caminho, ocorre-me que tantas crianças, em nosso país, morrem por inanição e falta de cuidados médicos. Ninguém as manda ao exterior. Ninguém responde por elas. Não se encontram, como agora, bonecos da televisão que ocupem alguns preciosos segundos da rede por sua causa. Mesmo a rede, ela própria tão poderosa empresa, não poderia então patrocinar a tal cirurgia, uma vez que o menino enfermo lhes serve tanto às melhores audiências? Claro, tudo faz parte da política a que tão facilmente nos habituamos, a dos canalhas sensacionalistas. O menino-símbolo atrai todas as atenções para a sua emissora, na verdade só o que querem é sempre enganar a todos. Chega a ser irônico, até vagamente cruel, que esse pobre menino, especialmente, tenha a sorte de estar sendo ajudado. E pensar que é apenas mais um menino entre milhões de nós. E pensar que estou sem dinheiro, e ninguém saberá…
Passo pela galeria, onde se expõe um carvão cujo motivo é uma criança nua com uma bola. Um menino. Claro que não me interesso muito pela figura humana, mas aqueles traços particularmente me atraem de uma maneira sombria. Vejo o corpo frágil de uma criança na mesa de operações, um calafrio percorre-me os ossos. Posso adivinhar que, após diversos esforços e a despeito de tantas correntes de orações, o menino vem a falecer. Já aconteceu tanto, com outros. Antigamente, não havia tais recursos, isso de cirurgias, que usavam-se tisanas, triagas, unguentos vulnerários e outros tantos preparos e processos, próprios da quimiatria rudimentar, nunca nada tão traumático e sinistro como essas mesas glaciais, instrumentos esterilizados, aparelhos de precisão, gráficos computadorizados, e as pessoas morriam doentes. Na cama. Em casa. Era muito melhor.
Retomo o caminho do banco, apalpo a cédula no bolso. Detenho-me à porta envidraçada, observo a multidão em fila, os funcionários muito atarefados, o olhar simpático e astucioso dos gerentes, e algo me impede de entrar. Este é o banco que tomou para si a arrecadação geral dos donativos, sei. Engordam seus totais com mais essa conta e ainda posam de altruístas. Pena que a população não perceba o jogo desses abutres. E agora, justo eu, que tão bem conheço seus truques e artimanhas, tenho de participar da fila para, diretamente, incrementar-lhes o lucro. Não, nada feito. Não mesmo. Não hoje. Amanhã. Tão certo quanto hoje, mais um entre os infinitos outros dias que ainda haverão de se abater sobre a Terra. Assim, tenho a noite para decidir.
Decidir? Ficou algo por decidir? Começo a andar em círculos pelo quarto, olhando, de minuto em minuto, a cédula sobre a escrivaninha. O menino pode morrer, mesmo que eu deposite o dinheiro. Ninguém saberá. Sento-me na cama, fico olhando a parede de cor neutra. Fico assim, olhando. A parede. De cor neutra. Isso, essa grana, me ajudará a desfazer-me de minha crise mais recente. Posso saldar pequenas dívidas com colegas ou, ao menos, almoçar todos os dias. Mordo as unhas, os dedos. E se aquela mulher tivesse ido, ela própria, ao banco? Se não me encontrasse, e nada disso acontecesse? Que deuses do acaso terão enviado aquela senhora sofrida e feia às portas de meu destino? Para fazer-me centro de uma questão ominosa, especialmente para confranger-me com tais pensamentos, não bastasse o que já me aflige entre os processos naturais de meu trabalhoso cotidiano? E não é que se trata de um destino apenas viver e morrer? Não sou eu o responsável pela saúde do garoto. A natureza prega tais peças a seus indivíduos, não observa idade ou tipo físico. Há milhões de anos isso acontece. Nós, vivos, somos o elo entre o passado e o futuro, representantes microbianos da inumerável, gigantesca, multifacetada família humana. Já Deus é a absoluta plenitude: para Ele, não há mais nada a fazer. Portanto…
Desperto de um cochilo em frente à TV. Pensei ter ouvido alguma coisa sobre o caso, mas não, não pude confirmar. E daí, se ele morrer? Quem não vai morrer? Morreremos por dedução lógica – uma continha simples e trágica. Porque ninguém sobreviveu antes de nós. Não há um só exemplo de um homem ou de uma mulher do passado que… Se pelo menos houvesse uma estatística de 0,0001%. Mas não há. Nenhuma chance. Chance zero. Lembrei-me de que, há poucos dias, uma colega perguntou, brincando, como eu gostaria de morrer, se pudesse escolher. Estranho. Por que eu não poderia escolher? Há tantas maneiras boas de se morrer que eu nem soube lhe responder de momento, nem saberia decidir com certeza, afinal. Mas, pensando na maravilhosa sensação de entorpecimento que proporciona o ruído manso da TV, acho que eu gostaria de morrer de sono – uma possibilidade exclusiva da era tecnológica. Gostaria de morrer de sono.
Hoje é sábado. Até o momento, pelo que sei, o dia mais frio da estação. Saio do escritório, onde acabo de esperdiçar outra manhã de minha vida e para onde só voltarei na segunda-feira. Por um motivo irrisório, como também não pude afastar essa memória recente da continuidade de meu dia, ainda há pouco minha colega sorriu-me, porém sem reação de minha parte, em troca de eu ter-me oferecido para ajudá-la com uma tarefa, dizendo que talvez o mundo fosse melhor se mais pessoas fossem assim, como eu. Ora, e não são? Por que não o seriam? Seja como for, esse seu elogio inocente e desastroso desabou sobre mim com o efeito de uma chuva ácida, apenas contribuindo para aumentar o gosto de minha crise. Vou almoçar na detestável lanchonete do alagoano, pois ainda não tive coragem de fazer uso da infausta nota de cem. Preciso relaxar, mas não consigo. Vou continuar bebendo até que entre o noticiário. Mesmo que procure esquecer, mais e mais anseio por novas sobre o menino. Assisto ao bloco local, ao regional, ao nacional e ao internacional, passando pelas desorientadas surpresas da economia, como também pelas futilidades do esporte. Nem uma palavra sobre o que mais me interessa. Penso que já se esgota o tempo do jornal, e eis que o apresentador assume de repente um semblante grave e põe-se a falar, com boa e clara dicção, sobre o estado clínico do paciente mais famoso do país. Deixaram esta por último, os salafrários. Mas não tenho como considerá-los agora. O menino entrou em coma.
Sinto que o mundo mal pesa sobre meus ombros, mal a realidade filtra-se através de meus olhos, caminho como se flutuasse, não ouço meus passos. Detenho-me junto ao portão de grade ornamentada, entrevejo os anjos e as árvores lá dentro. Sei que esse homem mexendo na torneira é o funcionário que procuro, pego-lhe o braço, tenho-o à minha frente.
“O senhor me enterre! Me enterre agora mesmo!”
“Que isso? Você tá bêbado!”
“Me enterre agora mesmo, ande! Me enterre com esta nota, está vendo? Esta maldita nota!”
“Cê tá bêbado, Deus o perdoe. Vá, se vá daqui, homem…”, empurra-me para fora do cemitério, devolvendo-me ao incrível mundo insano, tumultuoso, injusto e sempre mais absurdo onde me cabe viver. “Deus o perdoe…”
Ele não pode morrer hoje. Nem amanhã. Pois, na segunda-feira, serei o primeiro a entrar no banco. Faltarei ao serviço. Farei qualquer coisa para pôr fim a este pesadelo em que me embaracei como em uma rede de tentações mal elaboradas. E então verei sair de mim, afastar-se de mim, desaparecer para mim, esta nota avernal e aziaga, da qual não me esquecerei tão cedo.
À noite, torno a rastrear os noticiários televisivos. Encontro por fim o que procuro, mas os pilantras ainda fazem suspense em torno da situação, como de propósito para exasperar-me ainda mais. Finalmente, expõem os fatos. Meus olhos estão fixos, petrificados. Aos poucos, as palavras, as frases claramente pronunciadas tomam o curso do que mais receio ouvir. Mas ainda espero.
Inconsistência dos retratos – Guia de leitura
Eco, a cidade dos demônios – anterior
Raimundo Terra planeja seu suicídio – posterior
Imagem: Francis Bacon. Autorretrato (detalhe).
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