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Serviço de rua
Não, não sou audacioso, sei disso. Não tenho certos valores apreciados pela maioria.
Mas não estou vencido. Tenho planos subversivos para mim mesmo.
Há quase um ano trabalho num escritório de cobranças, e tenho me aguentado. Hoje sinto-me à vontade com os colegas, eles também fingem que nos gostamos. Quase um ano nos separa de meu malogrado começo, particularmente meu primeiro dia, fértil em constrangimentos. Disseram-me, logo ao chegar, que eu preenchia a vaga de um colega morto uma semana atrás, ruptura de um aneurisma – caíra sobre os papéis ali mesmo, em sua mesa, no meio do expediente, deixando viúva, filhos… Amarguei alguma dificuldade em ser aceito pelo resto da equipe, apesar dos esforços diplomáticos de nosso supervisor, homem experiente e comunicativo, que sorria com naturalidade e não se incomodava com a morte dos funcionários. Esse supervisor era um tipo baixo e corpulento, cabeça triangular, cabelos muito curtos, corte escovinha; os olhos, dois tracinhos quase sumidos. Por vezes tornava-se silencioso e traiçoeiro, de tal forma que nunca se podia adivinhar, por meio de sua expressão, se preparava algo contra quem estivesse conversando com ele ou se apenas ouvia, desinteressado. Eu ia ao lado dele, engolindo em seco.
“Conheçam seu novo colega”, ele sorria. “Sangue novo…”
Era de arrepiar. Como podia alguém morrer assim: sem um gesto, sem um grito, atrapalhando-me o primeiro dia no novo emprego? – e um emprego desses, na época, tão difícil conseguir…
Meu antecessor era muito querido, infelizmente. Diziam dele que era um cara honesto e brincalhão, incapaz de fazer mal a uma mosca (grande consolo), como se isso o tornasse alguém especial ou memorável. Todos me observavam como se fosse eu o responsável por sua ausência, como se me coubesse alguma parcela de culpa nos assassinatos cometidos por Deus. Para se ter uma ideia, uma colega, ao ser-me apresentada, rebentou numa crise de choro e teve de ser conduzida ao toalete por outras duas. Diplomacias à parte, uma situação e tanto. Não me ocorria o que dizer, e também não conseguia chorar, claro. Se ao menos o houvesse conhecido, convivido um pouco com ele… Bem, bem. Isso não é uma garantia de que eu fosse chorar.
Felizmente passaram-me logo à cobrança propriamente dita, ao serviço de rua, e isso serviu para atenuar o clima embaraçoso daqueles dias, minha timidez piorada pela situação e a resistência indisfarçável dos colegas. Hoje, as anedotas e os palavrões nos aproximam entre brincadeiras específicas, engraçadíssimas. Que bom que o planeta gira. Um ano fora suficiente para restaurar a permissividade, os comentários blasfemos, o humor negro inclusive, e apagar tudo. Quase um ano.
Em menos de vinte e quatro horas, dois colegas, separadamente, disseram algo sobre eu acabar sozinho no futuro. “Desse jeito, você vai acabar sozinho”, uma colega normalmente muito agitada, dela eu recordo cada palavra, fácil. Não me importo de ficar sozinho. De ficar sempre sozinho. Ela não acreditaria. Há algo em mim que não me faz sofrer com isso. Lembrei-me num relance do que lera certa vez sobre os guerreiros nórdicos: que eles eram audaciosos e não se importavam de sofrer. É claro que não sou audacioso – e não posso me comparar a nenhum desses bravos entusiasmados. Mas, também, não me importo de sofrer. A solidão não me faz, propriamente, sofrer. Caminho pelas ruas observando tudo, inalando o ar úmido da chuva mais recente, e sentindo o peso de meu corpo em movimento, constatando a brutalidade e a sutileza de estar vivo. Não, não sou audacioso, sei disso. Não tenho certos valores apreciados pela maioria. Mas não estou vencido. Tenho planos subversivos para mim mesmo.
Ainda que tentasse evitar – o que nunca faço –, as ruas costumavam cercar-me de cenas avulsas, frases ouvidas por acaso, pessoas em movimento protagonizando os dias, todos os dias, antes que viessem outros, outro tempo, outras gentes. Poucos dentre nós sabem que o dia é um globo que gira, um cilindro fechado, uma espada que cai, um dente que devora o que, de nossa parte, nunca mais será o mesmo. Descobrir o óbvio é sempre mais difícil. Eu assimilava a diversidade de tipos, suas roupas, cortes de cabelo, as religiões que os acalmavam, que os poupavam de desafiar o infinito, a razão da vida, as vozes e ruídos que produziam sob o sol, tão destoantes do silêncio onde o universo trama sua treva. Gente no meio da vida, a cada um seu passado, idioma e ideologia, seu futuro, o apodrecimento de tudo em que creem. Posso dizer mais, gosto de discorrer sobre isso. Mas considero muito mais interessante o que as palavras não dizem.
Gritos, ruídos. Um velho trôpego, vencido pelo álcool, barba e cabelos curtos, espetados, paletó negro e puído, como vestido para seu próprio funeral.
“Eu quero ir no caixão! Eu quero ir no caixão!”
Lançava-se à rua, tropeçava de volta, causando transtornos ao trânsito.
“Faz dois dias que eu não como. Dois dias que eu não como! Eu quero ir no caixão!”
Um negro aleijado, vendedor de bilhetes, poucos dentes, assistia a tudo de seu cantinho. Os outros passavam sem dar atenção ao velho. Só o negro se divertia.
“Vai pra casa, velho, olha que a polícia vem aí pra te prender. Ahahahah…”
“Se a polícia me prender… Eu quero ir no caixão!”
O pequeno delinquente esbarrou-me ao sair da loja. O japonês correu até a porta, perdeu-o de vista, suspirou e soltou os braços. O rapaz da loja vizinha aproximou-se.
“Roubando de novo?”
“Não é ele”, disse o japonês, melancólico. “Não é ele. É o país.”
Pequenos incidentes. Cenas avulsas, como disse. Há o que seja trágico em meus testemunhos, é o que acrescenta o serviço de rua. Trágico, nem tanto. Mórbido ou apenas… Bem, não importa o que seja. Se pode ser esquecido em breve.
A conspiração dos felizes – Guia de leitura
Leia mais dessa história: Vina, a quase viúva
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