Office in a Small City por Edward Hopper

Estudo com cristais. O réquiem das crianças (13/13)

Penso ver em seu rosto todos os rostos.
Em todos, o preço da paz. Em todos, o impulso da vida. Em todos, a face da morte.

Wassily Kandinsky. Outono na Bavária. 1908.A trilha de lajes hexagonais atravessa a noite – e a tormenta. Leva-me a essa manhã de árvores que, aos poucos, se dividem e se alinham entre alamedas, muretas e estreitas calçadas. Sofro uma estranha comoção, algo como um choque de luz e voz de pássaros, pois detém-me um ramo inclinado, a folha em detalhes à frente de meus olhos. Perto de onde estou, um grupo de crianças posa para uma foto, enquanto eu, somente eu, busco a folha singular, a nervura central, o minúsculo, o grão, o átomo. O mínimo cristal.

Por minha sombra de pernas magriças e cabeça desproporcional, vejo que não sou mais do que um menino, e assim me aproximo das crianças, que não me veem. Elas entoam uma espécie de hino coral, alegre e harmonioso, acompanhadas de instrumentos que eu não previa. Uma suave, contagiante felicidade as perpassa e as une, circula entre os sorrisos, os gestos avulsos, as vozes em encantadora ressonância. Em todas, no braço direito, uma tarja de intenso violeta. Eu as sigo como posso. Por que caminham como se dançassem?

O grupo dobra esquinas, entre as alamedas, ao som de suas próprias canções. No meio das crianças, confundindo minha sombra às suas sombras de mesmo sol, compreendo, por fim, a razão do cortejo: seis meninos, como uniformizados em predominante violeta, carregam o pequeno esquife que atravessa o parque. A urna sextavada: o hexágono próprio ao meu último corpo e aos réquiens que se podem cantar sorrindo. Deixo-me ficar, deixo-me ir. O grupo se distancia e vai diminuindo de tamanho, na perspectiva infinita das árvores.

Tomo outro caminho, bifurcação entre as alamedas desertas, desço e embrenho-me sob a sombra de copas mais espessas que gradualmente anoitecem essa outra senda. A trilha de folhas ressecadas dá na margem de um lago silencioso, onde um barco adormecido sob azuis irradia lentos vincos sob a superfície de lua. O barco é coberto, de cor indefinida, não pela noite que outra vez presencio, mas sim por causa de meus olhos fartos de arco-íris, como também de trevas. Subo ao convés e passo pela porta aberta de esperar-me. Lá dentro, meus olhos varam a escuridão. Aí está ela: Clave de Sol sentada no leito, nua e ao meu alcance. Não associada a uma cor ou a uma canção, mas a um sentimento de silêncio somente invadido pelo lento sinal de um sorriso esboçado. Penso ver em seu rosto todos os rostos. Em todos, o preço da paz. Em todos, o impulso da vida. Em todos, a face da morte. Tudo o que significou Clave de Sol para mim, todas as formas que encarnou. E um silêncio sem dramas, como apenas pode ser, sem apoteoses ou grandes fogos brancos. Sono e sonho esvanecendo-se, abro os olhos. Talvez seja tudo uma maneira de dizer. Palavras. Talvez não seja nada. Não lhe ocorre, ainda assim, que sou um geômetra, também secreto. Porque ela sempre soube que tinha em mim um homem qualquer. Sei também que o tempo se dilui. Mas é tão grande…

Clave de Sol aconchega entre os seios meu rosto de menino. Um último e duradouro gesto, antes que o barco deixe lentamente a margem, rumo ao coração dos cristais que se fossilizam após todos os encontros. Após todos os conflitos. E antes que se adense o que já é a noite, com seu escudo de estrelas.

Lisette Maris em seu endereço de inverno

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Imagem: Wassily Kandinsky. Outono na Bavária. 1908.

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